sábado, 24 de maio de 2008

Se a crise se acentuar vendo o meu cão


Parte I


Se a crise se acentuar vendo o meu cão


Tem pedigri,

Vacinas em dia.


Tem lombrigas,

Mas ninguém diria.


E se a crise se acentuar

Vendo o meu fígado


Tem um cão dentro dele

Mas ninguém diria.


Que se vender o meu cão

vendo-me nesse dia


Parte II

(Parte do leitor participante, espécie de carraça benigna...)


E tu queres vender o cão?

Um cão não se vende

Muito menos um homem

Há um cão dentro de cada homem

Que cada escritor sente através do fígado.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Porque me roem as térmitas os dedos?

Foto: João Luz
Respiro escrita pelos dedos.

Tenho as palavras nos poros encravadas como pelos.

Não me deixam dormir de tão ofertadas

Fazem barulhos estranhos durante a noite,

Como se fossem térmitas a roer-me despudoradas.


Sempre que olho para o lado vazio da minha cama,

Há mulheres deitadas com palavras, quase térmitas roendo-me.

Cada uma, um verso, um começo, uma prosa sem defeito.

Cada uma um final impossível de ser escrito.

Em cada uma um poema de alcova, insatisfeito mas dito.


E as que me olham desconfiadas,

Acendem cigarros no meu beijo e descruzam as pernas ao texto,

Como se eu tivesse merecido o direito à sorte,

Afinal, a minha vida é um eterno feminino:

- Palavra, escrita, desdita, morte.

A minha vida um desassossegado sopro de menino.


Já amei muitas palavras, fiz amor com o desgosto.

A quase todas despi os segredos, domestiquei os medos.

Fui amigo, amante, marido. Fui guerreiro e tombei ferido.

Sei que cada uma é uma só e o seu oposto.

Um pecado original repetido.


E se sei isto… porque me roem afinal as térmitas os dedos?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Chamava-se Quim

Foto: João Luz
Chamava-se Quim. Não sei se alguma vez nos cruzamos nas ruas da cidade.

Desconfio que sim. Afinal as cidades são esmagadoramente pequenas por maiores que sejam.

E parece que morávamos até em Bairros próximos. Divididos por uma via rápida. A mesma que matou o escritor de rua esquecido, atropelado por alguém que nunca leu um livro.

Chamava-se Quim, e morava num pacote de heroína, que tinha dentro todo o lixo civilizacional. Chamava-se beco, cingia-se de prata e fogo.

Não sei se fui um dos que cruzou os braços, quando por ele passou na rua do esquecimento…

Não me lembro.

Não me lembro de mo terem apresentado, dizendo: Chama-se Joaquim, mora dentro dele um homem como tu.

Eu andava demasiado ocupado em ser racional. Andava cansado.

Por isso não o vi no escuro, quando entrou furtivamente na central eléctrica.

Não vi que levava as mãos nuas e sapatos de terra nos pés. Não o vi contentar-se com cobre, que nunca em menino sonhou com ouro, nem o ouvi a mandar calar o silêncio, quando um cachorro vadio o tentou alertar do perigo com um latido.

Vi o seu corpo em fogo naquela notícia de jornal.

Foram 15.000 volts de indiferença que o mataram.

Regresso a ti

Foto: João Luz
Fiavas as palavras horas a fio. Com o novelo dos dias, um após outro, tecias o longo tapete de tempo por onde te urdias.

Por isso, ninguém te esperava do outro lado de ti quando apareceste sem avisar, regressado de todas as viagens feitas num livro.

Amor e ódio de igual maneira repartido, ilusão e queda pelos mesmos sentidos.

Dos heróis clássicos vestias todo o romantismo: Romeu, D. Juan, Quixote…E havia até um certo modernismo na forma como calçavas a desilusão dos prédios, como te avistavas em cada janela espreitando-te. Em cada longa avenida de passos perdidos.

Chegaste sem avisar, e a cidade já não te reconhecia.

Lembravas-te de ter uma família, filhos que brincavam no pátio. Havia até um cão de orelhas espevitadas, mas não te conseguias recordar do nome.

Apanhaste um táxi inglês e foste à procura das tuas memórias. Desembocaram numa casa pequenina, daquelas que conhecias das fábulas, dos contos infantis. Telhas de chocolate, cerca de madeira pintada de vermelho vivo.

A casota do cão ao fundo do jardim era de banda desenhada e havia um balão por cima com a inscrição: zzzzzz… Caminhaste devagar para não o acordar. Bateste à porta quase em surdina, pois tinhas um certo receio de despertar em ti memórias de sonhos passados que não sabias se tinhas vivido…

Ouviste passos. Caminharam em direcção a ti. Abriram-te a porta.

Eras tu, e habitavas naquela casa de escrita, de onde nunca tinhas saído.

Sentaste-te na velha cadeira de baloiço que te ofereceste, bebeste contigo calmamente um chá que fizeste. Folheaste o jornal.

A notícia do dia falava de um escritor galardoado. Da forma como tinha intermediado um conflito armado e tinha sido alcançada a paz, de como os homens se tinham unido para construir um futuro melhor, participado e livre.

Recostaste-te na cadeira baloiçando de cá para lá no tempo, e nesse processo fechaste os olhos, satisfeito.

Lá fora, o chilreio das crianças, chegava finalmente pela mão da Primavera.

sábado, 17 de maio de 2008

O poema quase um sustento

Foto: João Luz
Calcei-me de bronze.

Num primeiro segundo, quase brilho

Os meus pés como chumbo, minha boca seca

Vesti-me de tédio, fiz a mim próprio um filho

O silêncio tinha pelos na língua.


Houve um céu que não tinha palato

Houve um sol que prenunciava chuva

Houve um armário guardado num fato

Houve tudo o que não houve.


Se ao menos a chuva se calçasse de bronze…

Palavra a palavra, fosse a escrita um grito

O poema quase um sustento

A verdade uma lança capaz de cortar o tempo.


Fosse o sonho a bronze escrito


E não seria capaz de te dizer

De te amar para o que houver

De te sofrer

Não seria capaz de te ter

Nem sequer trocar:

Poesia por mulher.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Deixem fumar o Sócrates

Foto: João Luz
Deixem fumar o Sócrates

Não bastava já o moço ter sido condenado á morte sob a acusação de corromper a juventude!
Por amor de Deus, deixem fumar um último cigarro a um condenado.
Filósofo que se preze, tem um cigarrinho ao canto da boca…usa jeans de quando em vez, e perdoa-se-lhe até um charrinho em noite de ida à discoteca…
Perante a lei todos são iguais. Sei disso, mas caramba, todos sabemos que perante ela, há uns que são mais iguais que outros.
Liberdade, igualdade, fraternidade...
São conquistas da Revolução Francesa, e não se pode agora guilhotinar o moço, só porque inventou a guilhotina. Por favor…
Deixem fumar o Sócrates.
Ele criou aquela coisa da maiêutica, que não sei se não é a mesma que pariu o Maio de 68, mas por favor não entrem agora em silogismos, tipo:
- Sócrates fuma, Sócrates é Homem, todos os Homens fumam…
È que não é verdade!
Sócrates já deixou de fumar. Logo, Sócrates não é Homem?
Porra, estou confuso…
Ele foi visitar um amigo que se chamava Chavez e mascava folha de coca. Um dia, na falta dela, mascou folha de couve. Nunca mais foi o mesmo. Nasceu-lhe um tinto carrascão em bica na orelha direita e um caldo quase verde na língua, sem acordo ortográfico pelo meio.
Calha-te!, gritou um rei sem cinzeiro para mim, na cimeira dos grandes pantomineiros.
E eu calhei-me, porque não tinha a chavez do sucesso na ponta do lábio socrático que me pariu.
Mas que fumei esta história, isso fumei.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

A minha tristeza tem um circo agarrado

Foto: João Luz

Que coisa estranha esta de a minha tristeza ter um circo agarrado.

E todas as artes se cruzarem na arte trapezista de assim ser. De acontecer dia a dia no arame das coisas agarradas a cada um de nós. Malabarista dos afectos. Numa mão tenho amor e dor; na outra esperança, e faltam-me mãos para me dizer.

Que não me caiam delas os sentidos todos, mais um sexto, de ilusão, que pelas palavras acontece.

Se sou fera domada, já em mim sou palhaço também, e o chicote dos dias imperfeitos teima em fazer-me rir no riso dos outros.

Nas minhas costas cravou o atirador de facas, toda a sensualidade das mulheres circenses, com cobras e cães, araras e outras coisas, finas e raras.

A vida armou uma tenda em mim. No trapézio voador do que sou há uma distância percorrida. Uma mão que esperou ser agarrada e caiu.

Caí com ela nesse dia.

Salvaram-me as costas de um elefante sem memória, em equilíbrio sobre uma bola que era o mundo.

Enforquei-me hoje na oliveira do meu quintal

Foto: João Luz

Enforquei-me hoje na oliveira do meu quintal. Não que tivesse dado conta. Contaram-me.

Pelos vistos, a angústia de existir tomou conta de mim. Segundo me disseram, nos últimos tempos eu andava já um pouco estranho, dando mostras de algum descontrolo, principalmente durante os telejornais, quebrando repetidamente qualquer televisão que encontrasse pela frente.

Mas segundo parece, também quando frequentava manifestações de grupos minoritários empunhando cartazes com palavras de ordem, quase todas incompreendidas pelos próprios manifestantes.

Houve vezes até, em que, segundo consta, pintei algumas caixas Multibanco com tinta preta. Tinha esperança que o mundo percebesse que o dinheiro tinha morrido, lado a lado com tirania, a exploração e a miséria. A fome.

Não me lembro.Lembro-me de ser domingo. De haver um padre igual a todos os outros. Tocava o sino na falta do sacristão, empenhado e de saiote subindo no esforço. Lembro-me das meias: Eram à Porto. Porra, eram à Porto…

Se me lembro disto, porque raio não me lembro que estou morto?

Morri pela hora do meio-dia. Dizem que morreu comigo um cão sarnento. Nem compaixão nem lamento.

Morri hoje mais uma vez. Não que tivesse dado conta, contaram-me.