Um excelente trabalho de reportagem, feito na minha cidade natal, sobre um Grupo muito activo e muito malandro...
Gente que vive à margem das convenções e que tem como morada a palavra, a pintura e outras artes...
Vale a pena espreitar
http://www.youtube.com/watch?v=gXfmnabDjYA
segunda-feira, 10 de setembro de 2007
domingo, 9 de setembro de 2007
Conto: O pescador que tocava harmónica para os peixes
Esta é uma daquelas histórias de narrador participante, uma vez que a vou contar, tal como a senti e o povo conta na Vila de Fão.
Esta é a história de Néu Caniço, pescador desde o dia em que nasceu. Tão pescador como seu pai, seu tio e seu avô o foram.
Pescador de todos os dias, menos aqueles em que o mar não recebe visitas, que nesses muitos deixaram as famílias a chorar, e viram a terra recolher em urnas pobres, seus corpos inchados de água.
Velho Néu, quando o conheci, somava sessenta e poucos anos, tantos quantos os de pescador, que dizem, sua mãe o teve em noite estrelada e boa de pesca, a bordo do Srª da Bonança, ali perto de um rochedo que se avista de terra, a “Pena” e que faz parte de um conjunto conhecido como “Cavalos de Fão”.
Quando as gaivotas ficavam em terra, o pescador dividia os beiços entre um cerveja gelada e a sua harmónica, sentado no banco de pedra de sempre, costas apoiadas na parede de madeira do Bar do Sérgio, ou Fôjo, como é conhecido.
Tocava como ninguém.Parecia que a sua alma espreitava em cada compartimento do instrumento, para logo penetrar matreira nos ouvidos de quem parava para o escutar, de quem, como eu, se sentava próximo para sentir o lamento melodioso do mar, que aquele homem bom trazia também nos olhos.
As rugas, essas, tinha-as bem marcadas no rosto, espécie de vagas cavadas, uma por cada dia sofrido de faina; muitas…
Na boca um cigarro enrolado, muitas vezes empurrado com a língua para um canto, como se de um farol aceso se tratasse, e que rodava sobre o horizonte assinalando a neblina que lhe saía dos pulmões.
Velho Caniço tinha sempre histórias para contar, mas de todas, e qual delas a mais sentida, uma fazia as minhas delícias e era assunto rerrente na voz rouca do pescador. Começava sempre assim:
- Menino, já te contei daquela vez em que um “Mero” se me cravou na linha e puxou o meu barco á volta da Pena durante mais de meia hora?
Respondia-lhe sempre que não.
O Mero, um dos troféus de pesca mais cobiçados, é um peixe que pode atingir comprimento e peso consideráveis. Difícil de apanhar, este verdadeiro senhor dos mares, era o personagem principal da história do velho lobo, que azedava, cada vez que os mais novos, convencidos de que se tratava de mais uma “peta” de pescador, riam desatados, facto que o irritava profundamente, a ponto de harmónica ao bolso levantar amarras e zarpar para outros “portos”.
Um dia encontramo-nos em alto mar. Tenho por hábito mergulhar na “Pena” para fazer caça submarina, uma vez que o rochedo está só a uma milha e meia da costa, e o peixe aí sempre foi abundante. Não reparei, no entanto, que o barco que avistei ancorado a uma dezena de metros era o velho Srª da Bonança, e dentro dele o meu amigo dava linha ao tempo.
Equipei-me a rigor e tombei de costas sobre as águas límpidas daquele lugar.
De apneia em apneia, fui arpoando alguns exemplares, que por esses tempos, o meu fôlego era bem melhor que aquele que tenho hoje, e de mim, muitas vezes se riem os peixes…
A determinada altura, levado pela corrente, cheguei perto do barco vizinho. Comecei por avistar a âncora presa na areia, logo depois o casco por cima de mim e uma linha de pesca a ser recolhida, chumbeira pesada e anzol solto nas águas.
Mais um que fugiu, pensei.
Por cortesia, emergi para dar os bons dias ao colega no barco. Logo que saí do silêncio profundo das águas, um som familiar entrou nos meus ouvidos, ainda à procura do estampido libertador da pressão. A harmónica de Néu Caniço soltava a mais bela melodia que me foi dada ouvir a partir da boca da sua alma.
Era uma música suave, apaixonada, longe das melodias chorosas que o marujo costumava tocar em terra, e que no momento em que soltei o capuz do fato de mergulho, se tornou cristalina como as águas.
- Bom dia! exclamei surpreso.
- Bom dia menino, por aqui?
-.É verdade, disse eu , apoiando-me na mão calejada que me ofereceu para subir a bordo.
-.Não viu por aí o meu amigo Mero?
-.Não. Respondi, como sempre respondo quando me pergunta se conheço a história do fugidio peixe.
Ficamos por ali os dois um bom pedaço, enrolando conversas e cigarros entretidos, que a mim me sabiam a sal e ao velho ao mesmo de sempre, “farolando” o tempo.
Despedi-me que a maré começava a subir e uma fome sorrateira parecia pedir uma sandes de presunto no Fôjo e uma cervejola a estalar.
- Se vires esse grande malandro, diz-lhe que está próximo o dia em que o apanharei na linha.
- Pode ficar descansado. Respondi-lhe mergulhando no som da sua harmónica, que tocava novamente a encantadora melodia.
Quando estava a chegar perto da minha embarcação, entre umas algas, a poucos metros de mim, avistei uns olhos como nunca tinha visto em anos de mergulho: grandes, numa cabeça gigantesca, logo abaixo uns lábios grossos, de onde saiu uma bolha de ar que escapou em zig-zag até à superfície.
O peixe parecia bem menos assustado que eu, mostrou-me lento o seu comprido dorso e desapareceu num golpe decidido de barbatana.
Fiquei mais pesado que o lastro que trazia à cinta. Faltou-me até comprimento na barbatana para chegar á superfície. Ansiava por contar a Néu Caniço o meu encontro com o seu Mero.
Logo que soprei a água do tubo à tona, procurei a embarcação do marujo com os olhos salgados, não sei se de água se de vontade quase cega de partilha, mas já não estava. Tinha soltado amarras e nem o horizonte me trouxe a sua companhia.
Rumei a terra com uma ansiedade a substituir a fome. Na minha cabeça a visão ainda nítida daquele soberbo exemplar, a soltar senhorial a sua barbatana nas águas, entre algas e a minha incontida surpresa.
Na noite desse mesmo dia, chegado ao Fôjo, entrado na porta levantei os olhos sobre os presentes à procura do meu amigo. Perguntei ao Sérgio se o havia visto.Respondeu-me que não lhe punha olhos e ouvidos em cima desde que saiu para a pesca nessa manhã.
Confesso que fiquei um pouco preocupado, mas decidi sentar-me numa mesa do salão decorado com madeiras gastas de navios e motivos do mar. Sérgio de viola nas mãos soltava os primeiros acordes para os turistas, que naquela altura do ano eram frequentadores daquele sítio especial, místico até…
Da sua boca os primeiros versos do poema de Pedro Homem de Melo:
- Era um rapaz da camisola verde – negra madeixa ao vento, boina maruja ao lado…
Regressei a casa, com a letra no ouvido, abri a porta um pouco desajeitado devido à cerveja bebida com sede, deitei-me na cama e sonhei. Toda a noite.
No dia seguinte, calção posto rumei ao rio, porta de saída para o mar, ali bem perto do Fôjo, para me estender na areia e ler um pouco.
Estranhei uma azáfama que trazia gritos de mulher misturados e passos miudinhos de criança, atravessando a estrada, lado para lado com a minha admiração, o meu espanto, que em breve se transformaria em preocupação.
- Ainda não sabes? Perguntou o Sérgio, voz de pescador, “fangueiro” de gema.
- Não sei o quê?, respondi.
- O barco de Néu Caniço foi encontrado ancorado na Pena, a Polícia Marítima rebocou-o e está a trazê-lo para cá.
Os homens de farda azul-marinho chegaram passado um instante. As pessoas que entretanto se tinham juntado num burburinho de especulação, levantaram poeira do chão precipitando-se para junto da água. Os olhos acotovelavam-se prenunciando a tragédia…
Assim que o Srª da Bonança encalhou na areia, mulheres, homens, crianças entraram rio adentro. Ouvi de longe:
- Não está o velho, está cá só um peixe enorme.
Ocupando quase todo o barco, o maravilhoso Mero que eu tinha visto no dia anterior. Olhos grandes, cabeça gigantesca, num dorso que metia respeito. Junto a ele, quase nos lábios esverdeados do bicho, a harmónica gasta de Néu.
O velho pescador que me encantava no som da sua alma e suas histórias de água e estrelas nunca mais apareceu, rezaram-lhe missa e a tragédia abateu-se sobre a vila de Fão.
Morreu afogado. Assim pensam todos.
Todos, menos eu.
Quando mergulho na Pena, duas ou três vezes por ano, velho Néu Caniço sempre aparece entre as pedras, olhos gigantes de mar solto para me cumprimentar, levantando a sua mão calejada, como que dizendo:
-Tudo bem, menino?
Para logo desaparecer num golpe decidido de barbatana.
É o meu segredo, não contem a ninguém, que não iriam acreditar.
FIM
Nota: Este conto pertence ao meu próximo livro a editar brevemente.
Todos os direitos se encontram registados
Conto: Beatriz e o espelho mágico
à minha filha Beatriz
Beatriz Olhitos de Azeitona.
Tinha outro nome a pequena, mas o pai, desde que Beatriz nascera, que gostava de fazer piada com a sua silhueta morena, de cabelos nocturnos, num rosto onde brotavam em luz, dois olhos redonditos, como se de pequenas azeitonas se tratassem.
Quem não gostava mesmo nada da graçola era a “olhitos”. Agora, que tinha completado 13 anos, feitos no início desse mês de Dezembro, achava que tais nomes não eram nada elegantes para uma rapariga como ela, senhora dos seus domínios, dos armários abarrotados de vestidos, dos acessórios e perfumes, dos seus livros… mundo de fantasia onde entrava horas a fio, vestindo-se muitas vezes a rigor para desempenhar o papel das suas personagens favoritas.
Não raras vezes a mãe deu com ela teatral, a dirimir argumentos com o bengaleiro, vestido o infame traidor com o casaco de fato do pai, e o chapéu de palhinha que o avô trouxera das férias no Brasil.
Um dia, em que a casa se encheu de uma azafama que cheirava a mexidos e rabanadas envolvidos em canela; de avós “discutindo receitas”, que uma fazia com água e a outra demolhava em leite…que uma punha mel e a outra limão…, a morena, já um pouco ansiosa por provar as iguarias, gritou: - Quando é que se comem os doces e chega o Tio Bernardino?
Tio Bernardino era o mais excêntrico e fantástico dos tios. Passou a maior parte da sua vida em África, mas estranhamente não tinha em sua casa nenhuma cabeça de Leão empalhada. Nem sequer uma pele de jibóia, coisa comum em muitos, que as trouxeram como troféus de caçadas inimagináveis, e que da boca do Tio, Beatriz nunca ouvira contar, ou haveria, algum dia que fosse, escutar.
A sua casa tinha objectos bem mais interessantes. Os livros estavam por todo o lado: arrumados, desarrumados, empilhados, abertos, fechados…depois, uma infindável variedade de objectos: estátuas, estatuetas, amuletos, máscaras esculpidas em madeira, objectos de uso quotidiano das tribos africanas, pinças, lupas, canivetes, colecções de tudo o que se pudesse imaginar.
A de borboletas era fantástica. Não estavam as extraordinárias e coloridas criaturas espetadas em alfinetes sob superfície mole, não! Para cada uma, o dedicado senhor criara um ambiente minúsculo, em caixas de vidro, parecendo que a vida efémera daqueles seres, havia sido eternizada, pois podiam ser vistas nas mais variadas posições: poisadas num ramo, flor ou pequena pedra, alimentando-se ou apenas mostrando toda a sua beleza.
Beatriz adorava o tio-avô.
Tinha sido ele quem lhe oferecera a maior parte dos livros que tinha. Mil e uma histórias mirabolantes, algumas escritas pelo próprio aventureiro ao longo da sua vida; feita de viagens, do conhecimento da vida de tribos, povos, pessoas. Reis em carne e osso.
O escritor, tinha durante quarenta anos, escrito e publicado dezenas de contos, histórias, relatos de viagem, monografias, um romance até.
Era o seu ídolo.Ansiava pela hora em que as dobradiças do portão anunciariam a sua chegada; bonacheirão, embrulho debaixo do braço, pronto a soltar uma sonora gargalhada, daquelas que parecem ter pernas e chegam a todo o lado.
E chegou.
Chegou quando o bacalhau e as batatas para a ceia de Natal, caíram redondos no escoador, um segundo apenas antes da avó “Quinhas” mostrar os seus dentes com coroa de ouro, gritando:
-Prá mesaaaa!
Olhos de azeitona crescida correu para ele, abraçou-o pela cintura, cabeça encostada à sua proeminente barriga.
-Vieste Tio!
-Claro que sim, princesa. Disse o tio, encontrando sítio para colocar um volumoso, mas estreito embrulho, que trazia debaixo do braço.
Por este nome não se importava Beatriz de ser chamada. Era como se sentia, quando as mãos, apesar de tudo delicadas daquela pesada figura, lhe acariciavam os cabelos, quando a sua barba grisalha lhe picava o rosto, num beijo alegre e solto.
-Podia lá eu perder a Ceia de Natal, confeccionada pela minha bela irmã…
A cozinheira corou num sorriso brilhante, disfarçando o mesmo embaraço que tinha em menina, quando os rapazes lhe atiravam piropos no caminho de casa, bilha do leite apertada no peito, lenço na cabeça segurando os negros e longos cabelos.
A mesa de Natal era um regalo, e não era só porque estava posta a melhor loiça e os copos altos que a avó guardava durante o resto do ano como relíquia, no louceiro fechado da sala. Era porque as iguarias disputavam entre si o privilégio de serem as primeiras a ser provadas.
Misturavam-se no ar os cheiros, especiais e saudosos, que naquele dia do ano traziam todos pendurados por uma sapatada da avó, quando alguém furava a barreira de mulheres na cozinha e depenicava à socapa as delícias.
Os pais de Beatriz a um lado da mesa, mais os avós maternos. Do outro, os paternos e tia Lola, irmã solteira do pai. Nas pontas da mesa, olhos nos olhos, à distância da ternura, a jovem e o tio, de história sempre pronta, que encontrava para contar nas coisas mais triviais: na presença de um objecto, nas palavras de alguém, que logo fazia suas, dizendo:
- Não te esqueças do que vais dizer…
A refeição foi uma alegria. As gargalhadas afinavam o tom pelo diapasão de Bernardino, homem que envolvia a plateia a uma só voz, e cuja assombrosa memória trazia sempre no discurso, uma história esquecida de cada um dos presentes, uma curiosidade, que a todos agradava, mais os embaraçados, que no fim, de bochecha corada, riam na gargalhada de todos.
Não faltava nada ali. Era pelo menos isso que pensava a jovem, cativada no cheiro adocicado do cachimbo africano, no aroma a café que se espalhava através dele no ar; no ar satisfeito do homem de quem tanto gostava; responsável pelo prazer que tinha na leitura, pela sua constante fantasia, pela sua alma cheia de aventuras e personagens principais.
Era verdadeiramente, o seu herói.
Um pouco antes da meia-noite, quando a lareira precisou de mais umas canhotas, o atiçado escritor, aproveitando a deixa, sentou-se na velha cadeira de baloiço da avó, fazendo festas ao lume que começava a crepitar na madeira seca e disse, para os que já envolvidos nos seus gestos, se sentavam apressados à volta do fogo:
- Vou contar-vos hoje, noite de Natal, a história triste da princesa “Nimé”, tal como aconteceu num tempo distante e a sua memória passou de pai para filho até aos dias de hoje.
E começou a contar, como se lesse o texto, no tele-ponto dos olhos-azeitona de Beatriz, cujo brilho concorria com aquele que vinha da fogueira, extasiada por cada palavra rouca saída da voz do tio.
- Há muito, muito tempo, no interior da selva africana, uns caçadores de uma tribo importante, fizeram um achado que mudaria para sempre a história do seu povo.
Encontraram no mato, inexplicavelmente, uma criança de raça branca, com poucos meses de idade, sem qualquer vestuário, deitada numa cama de folhas, não havendo por perto qualquer vestígio humano ou objecto que a identificasse.
Levaram-na para a aldeia e o Rei ordenou que fosse entregue aos cuidados de uma ama, que fosse educada como eram os filhos da tribo.
Baptizou-a com o nome de “Nimé”, que significava “criança perdida”.
Nimé, cresceu feliz no seio daquela sociedade. É certo que era de raça branca, mas isso quase não se notava, uma vez que a sua pele era morena, os seus cabelos negros e os olhos dum verde profundo retirado ao verde das Árvores.
Aprendeu a língua, as histórias antigas, aprendeu a contar histórias que arrancavam sorrisos aos mais velhos, porque tinha uma imaginação sem limites, porque se encantava com os segredos da floresta e parecia saber escutar e ler os seus sinais.
Aos treze anos era uma bela jovem, que o rei tinha adoptado como uma filha predilecta, vivendo lado a lado com os seus e esposa.
Havia, naqueles tempos uma tribo rival que ansiava por tomar e subjugar o seu povo, mas a sua coragem e liderança aliada à valentia dos guerreiros, sempre travou as investidas dos que viviam do outro lado do rio grande.
Os sucessivos falhanços levaram os invasores a recorrer a outras estratégias.
Procuraram na floresta o feiticeiro Salii, homem gigante e medonho, que vivia numa sombria gruta e cuja magia era respeitada e temida por todos, pedindo-lhe a solução para aniquilar o povo vizinho.
Salii lançou ossos e pedras pelo chão, queimou plantas de cheiro intenso, matou um animal com um golpe sangrado e guinchou ele próprio como um porco bravo. Atingiu êxtases alucinado, revolveu os olhos e disse com voz do outro mundo:
- Se quereis matar o rei, tirai-lhe Nimé.
Os emissários regressaram a casa com um espelho colocado num caixilho árabe, com ordem do feiticeiro para que o fizessem chegar à princesa adoptiva do Rei e que esperassem até ao momento em que esta completasse 18 anos. Aí, haveriam de conhecer a força da sua magia e do seu poder…
Assim fizeram, enviaram uma comitiva real, levando as boas intenções do povo do outro lado e a esperança de dias melhores, de coexistência pacífica, fazendo a oferta de vários presentes em prova de boa fé, entre os quais, o espelho que viria a causar a tragédia de todo uma sociedade tribal.
Nimé, não lhe resistiu. Tinha já passado longas tardes a apreciar a sua fugidia figura nas águas do rio, mas nunca se vira como até ali, na mais pura nitidez, naquele objecto mágico, que parecia ter vida dentro dele e revelava todos os seus encantos.
O Rei vivia feliz, cada dia mais encantado pela beleza daquela criança perdida que um dia os deuses lhe deram. Encantado pelos seus dons, pela sua serenidade, como se ela representasse a esperança de todo um povo, através das enormes qualidades que possuía.
Mas um dia a tragédia aconteceu, da mesma forma que apareceu do nada Nimé desapareceu sem deixar rastro. No seu quarto nenhum sinal, nenhuma prova de rapto, nada.
Apenas um estranho facto. O espelho brilhante que a jovem tanto amava ficou negro como carvão. Não reflectia nenhuma imagem, tinha-se tornado escuro como a noite.
Ninguém soube mais nada da princesa. O território foi atingido por calamidades naturais, que devastaram as culturas e mataram os animais. A fome tomou conta de todos, a fraqueza fez a vitória dos invasores.
No dia trágico em que as aldeias foram saqueadas e queimadas, na madrugada desse dia, o Rei acercou-se do rio. Levava debaixo do braço aquele espelho que lhe dilacerava o coração.
Olhou o rio que corria sempre diferente, as águas revoltas e lançou num dos últimos gestos decididos que fez naquele dia o espelho para dentro dele, chorando…
Ficaram só alguns para contar de geração em geração a tragédia que se abateu sobre aquela civilização florescente depois da bárbara investida.
Diz a lenda, que um dia Nimé ressurgirá das águas para curar as feridas de todos os que sofrem, com palavras de amor, de esperança. Que muitos a seguirão no caminho da paz e da fraternidade universal, porque a sua mensagem será de amor.
FIM.
As palmas ecoaram na sala, rápidas. Ninguém havia dito uma só palavra enquanto Bernardino contou a história. O fogo na lareira quase se apagou e ninguém deu por isso.Beatriz estava encantada com a história a um mesmo tempo tão bela e tão triste que o tio contara. Estava prestes a dar-lhe um abraço, quando este levantou um dos seus dedos finos e disse:
-Ah, já me esquecia…trouxe uma prenda para a minha bela sobrinha que há dias fez anos…Procurou com os olhos em redor o local onde havia deixado o embrulho que trouxera quando chegou a casa e encontrou-o, dando-o a Beatriz cujos olhos faiscavam, ansiosa por descobrir o conteúdo do estranho pacote.
Rasgou o papel de embrulho em dois tempos. Surpresa! Um espelho estava agora nas suas mãos, caixilho árabe dourado, vidro escuro como breu.
Não podia acreditar, o espelho de Nimé.
Correu a abraçar o tio, chorando de felicidade. Os presentes riram de tamanha brincadeira de Bernardino, dizendo-lhe que só ele para contar estas histórias, fazer estas surpresas, tão cheias de encanto.
O escritor sorriu. Colocou na cabeça o chapéu e despediu-se que se fazia tarde.
Beatriz cresceu.
Não há mais nenhum espelho no seu quarto, que não aquele que o tio-avô lhe ofereceu no natal de há 25 anos. Nele se vê como mulher, nele se olha por dentro da sua alma. É a única que o consegue fazer.
O dia de hoje é especial para si.
Olha-se mais uma vez no espelho, ajeita o colarinho da sua blusa branca, toca com os dedos a sua pele morena do rosto, afasta uma madeixa rebelde do ombro. Sorri e sai.
Em cima da mesa um jornal.
Na primeira página, a notícia do momento:
BEATRIZ SALVADOR RECEBE HOJE O PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA
Primeira mulher portuguesa a receber o prémio Nobel, a segunda nas letras, depois do escritor José Saramago ter recebido igual distinção há precisamente trinta anos atrás.
O Comité Nobel achou por bem agraciar a portuguesa, autora de uma obra impar na literatura, reconhecendo-lhe a sua enorme generosidade pelo uso da palavra, na luta contra a exclusão, o racismo e todas as formas de segregação racial.
Na altura em que recebeu a Notícia, Beatriz Salvador, ou “Olhitos de Azeitona”, como os amigos carinhosamente lhe chamam, de 38 anos e que escreve desde os treze, encontrava-se a jardinar na casa que foi pertença em vida do seu tio-avô, o escritor Bernardino Salvador, e que este lhe legou com todo o seu espólio pessoal e literário, aquando da sua morte, no passado ano, com 98 anos de idade.
Questionada sobre o significado do prémio, a ilustre escritora respondeu:
- Um espelho d´água.
Nota: Este conto pertence ao meu próximo livro a saír brevemente.
Todos os direitos registados
Conto: Susana só
Abriu a pesada porta da garagem e a luz solar iluminou a um canto a velha bicicleta que lhe passeou a adolescência, desde o dia do seu 12º aniversário, oferta do pai.
Cinco anos e uns quantos meses passaram desde esse dia em que, Susana, extasiada se lançou vereda abaixo disposta a conquistar a estrada, mas que a traiçoeira areia, junto à casa da Mariquinhas, tratou de por um ponto final à aventura, pelo menos nessa tarde fatidica, marcada a tintura e lágrimas.
Agora que a entrada na Universidade era certa e as férias começavam, sentiu vontade de montar na garupa 24 e partir de novo à aventura, mesmo porque as mazelas antigas eram já só memórias cicatrizadas.
Os shorts curtos e o top rosa inundado pelos seus caracois fartos eram tudo o que precisava para se sentir livre.
Pedalou distraída pela velha estrada que noutros tempos aturou o ranger das rodas debroadas a aço ferrugento da carroça do zé moleiro, disposta a fazer o caminho que a levaria à cascata do poeta.
Pelo caminho bebeu os cheiros quentes da terra e colheu flores coloridas que guardou no cesto lilás da sua velha bicicleta da infância. Estava feliz, despreocupada, como se tudo no mundo fosse belo e a sua vida só agora começasse.
Chegada ao destino, apeou com facilidade da bicicleta de selim subido, cuja marca estava tingida a suor no short delicado que trazia. Achou piada aquele triangulo esculpido sobre a sua silhueta de menina-mulher e instintivamente a sua mão delicada tocou o seu sexo num arrepio que pediu licença à boca para sair, num gemido surdo que quase espantou os passaros...
Estava excitada e como o olhar em redor trazia só o eco pingante da água da cascata, procurou com o desejo afiado, uma pedra romba para se sentar, ali bem próximo da água.
A sua mão, húmida nos dedos da humidade quente que exalava da sua delicada vagina, percorreu com ardor a entrada da sua pequena e depilada gruta, em movimentos cadenciados e de carícias feitos. Desceu o calção com sensualidade e a pedra quente gemeu também.
Não sabia bem dizer há quanto tempo estava ali perdida naqueles movimentos, nem o sabiam dizer os seus pequenos seios de bicos marmóreos, grandes o suficiente para sentirem a brisa acaricia-los e envolvê-los.
Num repente, na nesga de um olhar perdido pensou ver um vulto por detrás de um arbusto. Não se assustou porém o suficiente para estremecer ou perder a compostura, como se tal fôsse possível na candura agitada que toda ela exalava em perfeita comunhão com a natureza que lhe conhecia o nome.
Susana ficou ainda mais excitada com a possibilidade de estar a ser observada. Levantou-se delicadamente e a pretexto de preparar um banho relaxante nas águas cálidas da lagoa, não deixou de reparar pelo canto do olho, agora mais claramente, que um jovem rapaz, em movimentos frenéticos de mão, dava largas a um desejo que o consumia e que envolvia em comunhão o folhedo, o que quase a fez rir e estragar tudo...Entrou na água sem que os peixes dessem por ela, despida de medos, receios. A sua comunhão com a natureza era perfeita, como se pertencesse ali e dali nunca tivesse saído, sob pena de o quadro perder todo o equilibrio, toda a grandeza das coisas simples.
Viu, pelos olhos dos peixes, o secreto amigo segurar na cintura magra um par de calças fugidias, atarefado , enquanto deslizava com aparente facilidade os pés descalços pela íngreme escarpa. Ter-se-ía assustado?
-Olha! Onde vais, não precisas de fugir!
O rapaz parou subitamente.
O seu cabelo comprido tapava a espaços todo o sol e, sempre que isso acontecia, aquele rosto de feições afiadas brilhava com o brilho que tem o bronze, sereno agora como uma estátua, fitando com seus olhos redondos e verdejantes aquela que o interpelava.
- Chamo-me Jorge, refilou quase irritado, como garoto descoberto a meio da travessura.
- Susana Maria! respondeu-lhe a ágil nadadora, submergindo os ombros redondos no espelho d’água, deixando vísivel por um eterno segundo as roliças formas do seu rabo.
-Só Susana!
Como?.... perguntou, repelindo a água com os braços.
-Gosto mais de Susana.
-Seja...
Jorge era cigano. Cigano como todos os seus, dono da noite e do dia, das estradas empoeiradas sem regresso anunciado. Aprendera desde novo a linguagem surda da natureza, conhecia-lhe as formas em mutação e foi gerado, parido e agasalhado num ventre de urze e estrelas.
O que Jorge nunca vira nem sentira era o pulsar da natureza no corpo de uma mulher tão bela.
Sem reparar, deu por si de garganta seca, ali a dois passos da água, à distância quase impossível de um só passo que fôsse. hesitou o tempo suficiente para que a sua mão morena afastasse dos seus olhos –prado, uma madeixa de sol posto que ancorava em fio no lábio superior da sua boca desenhada.
- Estou acampado aqui perto! Disparou satisfeito com a mão em concha escorrendo uma nesga de água que sobrou do gôlo sôfrego.
- Não queres entrar? disse Susana esperançada...
- Talvez mais logo, pronunciou convicto, afastando-se em direcção a uns arbustos de onde colheu amoras rubras que juntou com rebeldia na fralda suja da camisa. Apontou-as com o indicador e o queixo, oferecendo-as a Susana, que deixava advinhar todos os seus encantos por debaixo da roupa molhada.
Ficaram ali, boca suja escorrendo o barulho da cascata, sorrindo pelos passaros.
Até que um assobio colocado, ondulando pelas pedras, os acordou daqueles momentos satisfeitos.
Era Juan quem se anunciava ao longe, pelo cheiro dos cães, pelo faro estuto dos passos, pelos galhos a pedir clemência.
-Tenho que ir! Preciso de ir! Disse com a voz presa na trela daquele assobio curto, como se a demora tivesse começado a contar no preciso momento em que a lingua se dobrou no palato.
-Encontramo-nos à noite aqui? inquiriu Susana, aumentando o volume da sua voz cândida à medida que Jorge se afastava.
A resposta não veio.
O jantar foi engolido entre duas notícias no telejornal e a boca ainda cheia de uma meia desculpa para o pai, desconfiado da filha e do vinho que Dona Emilia, a mãe, colocara na mesa.
-Já não se fazem filhos, nem vinho, como antigamente...
O caminho demorou pouco tempo a fazer. Foi correndo, que a noite estava estralada como nunca e a lua brilhava serena, deixando escapar aqui e ali um bocejo.
Susana era toda ela palpitação. Sentia correr o sangue nas veias, na tez queimada, no sexo apertado. Chegou à Cascata do Poeta toda ela aberta por dentro, ofegante de desejo.
Ficou à espera o tempo suficiente para ser surpreendida pelas mãos nuas, pelo tronco nú, pelo sexo ardente de Jorge, que a tomou pelos quadris, apertando-a para onde não havia lugar para escapar, nem memória.
O vestido de Susana caiu naturalmente, como se fôsse feito da mais pura seda fugidia. Por baixo nada, que a ideia do aperto, nem que suave, da malha contra o corpo, era suficiente como desculpa.
Jorge tomou-a, como se toma a água, bebendo-a e penetrando-a de uma vez só, de uma só golada.
A noite quente foi a única testemunha e a água da lagoa apadrinhou a união lavando os corpos extasiados à deriva.
No ar ficou a promessa de um novo encontro que nunca veio a acontecer.
A brisa levou o cheiro crú de Jorge, a poeira do caminho suspirou no reencontro das rodas de madeira das carroças com as pedras soltas do caminho, gravando sulcos, hieroglifos de uma história fugaz de amor.
Susana reencontrou mais tarde a terra que a viu partir, formada, casada e com filhos chilreando à sua volta.
Nesse verão a lagoa estava ainda mais bela que antes. As flores tomavam as margens, inundando-as. As duas filhas mais novas brincavam para além do olhar distante do mano velho, autoritário na paisagem. Dir-de-ía que a pedra onde repousava era uma espécie de pedestal para aquele Adonis moreno, que parecia recolher o tributo de ser o senhor daquele lugar. Desde sempre.
Susana acercou-se do seu rebento acariciando-lhe a testa e sorrindo pelos seus lábios.
- Tudo bem Jorge?
- Sim mãe. Contas-me outra vez aquela história que me contavas quando era pequeno... aquela do cigano que um dia resgatou das águas uma princesa encantada que lhe deu como prémio a terra e o céu...
-Só se fores tomar um banho que estás todo sujo.
-Só isso...
-Só. Respondeu Susana , vendo o seu filho mergulhar altivo para dentro do espelho.
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos tes olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
Conto: Oficina da palavra
O letreiro, discreto e manuscrito, chamou a minha atenção ao passar pela rua dos artesãos. "Oficina da palavra - Consertos rápidos". A minha curiosidade não matou o gato, mas calcou-lhe o rabo sonolento no vão escuro das escadas...
Não refeito do susto, o felino quase apanha o eco do grito, o meu e o dele juntos, tal a velocidade com que subiu aquela dezena de degraus, à procura da festa compreensiva do dono, saltando-lhe para o colo.
Parecia que as mãos grossas e calejadas daquele homem por volta dos quarenta o aguardavam desde o preciso momento em que a sola do meu sapato gasto não encontrou só o degrau da escada.
Antes mesmo que eu pudesse articular um pedido de desculpas, já o bichano descia veloz até aos pés do dono, cuja mão estendida procurava a minha, atrasada.
-Fernando, ao seu dispor...
-José, muito prazer.
-Em que lhe posso ser útil?, perguntou aquele artesão de avental sujo, do alto de uma voz rouca, mas serena, amarelecida por um cigarro consumido que apagou sem pressas num cinzeiro de pedra sob a bancada.
-Vim pela curiosidade...
-Sente-se então, por favor. E dizendo isto apontou com o indicador uma cadeira de baloiço, onde me refastelei deliciado.
Tinha dali uma visão perfeita de toda a sala. Na bancada uma tábua de madeira estava prestes a ser talhada. Outras, ao alto, esperavam o mesmo destino sossegadas...O relógio de pé, tinha um compasso cansado, porém atarefado, parecendo não conseguir alcançar o tac seguinte em cada balanço do pêndulo e da minha cadeira...
Fechei os olhos.
Não sei quanto tempo dormi. O relógio estava parado ao fundo, marcando as cinco da tarde. Nem gato, nem homem, a sala estava vazia...Assim que me levantei, o meu pé voltou a calcar algo mais duro agora. Os meus olhos, escorregando-me pela cara, foram caír na placa de madeira tosca que estava a meus pés.
Esculpidos nela com mestria, os mais belos versos de um poema de amor. Li cada verso, cada palavra, cada letra com uma estranha familiaridade desconhecida...
Aquele poema só podia ter sido escrito por mim. O tema, o jogo de palavras, a rima, eram meus... Estava atordoado com tudo aquilo e reli...
Não tinha dúvidas, a escrita ali impressa, ali talhada a escopro e martelo, só podia ser minha e a própria assinatura no fundo não enganava:-Era a minha em cada letra.
Peguei naquele poema envernizado, mas curiosamente sem cheiro fresco, coloquei-o debaixo do braço e tacteei os degraus inversos, sem luz, nem gato...
Em casa, descobri o sitio ideal para o expor, pois aquele era um poema para expor, não para editar no Luso - Poemas, mas para expor como um quadro, uma obra de arte, que eu tinha a certeza, existia por si, tinha uma alma, um tempo que os varvitos da madeira guardavam só para si, insondáveis pela ciência dendocronológica.
Dormi aquela noite na sala, junto dele...
No dia seguinte, decidi voltar à oficina. Dobrei a esquina sôfrego de um agradecimento que me queimava a garganta, ansioso para o largar nas mãos daquele homem, do qual só sabia o nome: Fernando.
Subi os degraus, dois a dois, à procura daquela pessoa... Distraído, nem reparei que a simpática placa da porta já lá não estava, bem como as madeiras empilhadas, nem a bancada, nem as ferramentas...porém, no canto mais afastado da sala, o velho relógio marcava o tempo ritmado, agora, pulsante como um coração batendo, palpitando em cada movimento. Passei as minhas mãos pelas suas marcas, acariciei o vidro, encostei a minha face na sua e chorei a perda de alguém, que eu não tinha tido tempo de conhecer verdadeiramente...
Uma mão de mulher afagou os meus cabelos...dedos longos, finos e delicados como ponteiros. Secou as minhas lágrimas com um sopro quente de vida...encostou a costa da sua mão à minha boca que queria perguntar o mundo. Beijou os meus lábios, com uma madeixa loira do seu cabelo a acariciar o meu espanto, cada vez menor, cada vez mais comprometido. Fizemos amor.
Sandra é minha mulher agora. Casamos, tivemos filhos. Dois.
O rapaz gosta de trabalhar as madeiras, a rapariga escreve poemas...
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho2007
Não refeito do susto, o felino quase apanha o eco do grito, o meu e o dele juntos, tal a velocidade com que subiu aquela dezena de degraus, à procura da festa compreensiva do dono, saltando-lhe para o colo.
Parecia que as mãos grossas e calejadas daquele homem por volta dos quarenta o aguardavam desde o preciso momento em que a sola do meu sapato gasto não encontrou só o degrau da escada.
Antes mesmo que eu pudesse articular um pedido de desculpas, já o bichano descia veloz até aos pés do dono, cuja mão estendida procurava a minha, atrasada.
-Fernando, ao seu dispor...
-José, muito prazer.
-Em que lhe posso ser útil?, perguntou aquele artesão de avental sujo, do alto de uma voz rouca, mas serena, amarelecida por um cigarro consumido que apagou sem pressas num cinzeiro de pedra sob a bancada.
-Vim pela curiosidade...
-Sente-se então, por favor. E dizendo isto apontou com o indicador uma cadeira de baloiço, onde me refastelei deliciado.
Tinha dali uma visão perfeita de toda a sala. Na bancada uma tábua de madeira estava prestes a ser talhada. Outras, ao alto, esperavam o mesmo destino sossegadas...O relógio de pé, tinha um compasso cansado, porém atarefado, parecendo não conseguir alcançar o tac seguinte em cada balanço do pêndulo e da minha cadeira...
Fechei os olhos.
Não sei quanto tempo dormi. O relógio estava parado ao fundo, marcando as cinco da tarde. Nem gato, nem homem, a sala estava vazia...Assim que me levantei, o meu pé voltou a calcar algo mais duro agora. Os meus olhos, escorregando-me pela cara, foram caír na placa de madeira tosca que estava a meus pés.
Esculpidos nela com mestria, os mais belos versos de um poema de amor. Li cada verso, cada palavra, cada letra com uma estranha familiaridade desconhecida...
Aquele poema só podia ter sido escrito por mim. O tema, o jogo de palavras, a rima, eram meus... Estava atordoado com tudo aquilo e reli...
Não tinha dúvidas, a escrita ali impressa, ali talhada a escopro e martelo, só podia ser minha e a própria assinatura no fundo não enganava:-Era a minha em cada letra.
Peguei naquele poema envernizado, mas curiosamente sem cheiro fresco, coloquei-o debaixo do braço e tacteei os degraus inversos, sem luz, nem gato...
Em casa, descobri o sitio ideal para o expor, pois aquele era um poema para expor, não para editar no Luso - Poemas, mas para expor como um quadro, uma obra de arte, que eu tinha a certeza, existia por si, tinha uma alma, um tempo que os varvitos da madeira guardavam só para si, insondáveis pela ciência dendocronológica.
Dormi aquela noite na sala, junto dele...
No dia seguinte, decidi voltar à oficina. Dobrei a esquina sôfrego de um agradecimento que me queimava a garganta, ansioso para o largar nas mãos daquele homem, do qual só sabia o nome: Fernando.
Subi os degraus, dois a dois, à procura daquela pessoa... Distraído, nem reparei que a simpática placa da porta já lá não estava, bem como as madeiras empilhadas, nem a bancada, nem as ferramentas...porém, no canto mais afastado da sala, o velho relógio marcava o tempo ritmado, agora, pulsante como um coração batendo, palpitando em cada movimento. Passei as minhas mãos pelas suas marcas, acariciei o vidro, encostei a minha face na sua e chorei a perda de alguém, que eu não tinha tido tempo de conhecer verdadeiramente...
Uma mão de mulher afagou os meus cabelos...dedos longos, finos e delicados como ponteiros. Secou as minhas lágrimas com um sopro quente de vida...encostou a costa da sua mão à minha boca que queria perguntar o mundo. Beijou os meus lábios, com uma madeixa loira do seu cabelo a acariciar o meu espanto, cada vez menor, cada vez mais comprometido. Fizemos amor.
Sandra é minha mulher agora. Casamos, tivemos filhos. Dois.
O rapaz gosta de trabalhar as madeiras, a rapariga escreve poemas...
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho2007
Conto: Memória de um sonho de voo
Os corpos caíram com um estampido seco na calçada, um atrás do outro, seguidos.
Ouviu-se um marulhar de gente a levantar os olhos e o queixo em direcção ao cimo do prédio onde já não estavam, só depois em direcção ao chão.
Os membros retorcidos de Pedro e Inês, abraçavam-se em sangue e outros líquidos corporais. Os gritos sucediam-se como aviso da fatalidade aos desprevenidos e os olhos das crianças que até esse momento brincavam, foram tapados com mãos trémulas de dor.
O beiral do telhado alto do prédio tinha os dedos dos transeuntes apontados, sinalizando o local da queda. Teriam caído? e que fariam nesse caso ali? Ter-se-iam suicidado!...?
Pedro e Inês conheciam-se desde sempre, mas foi numa segunda-feira de Março, exactamente dois anos antes daquele dia rubro, que os seus olhos se abraçaram sob a cumplicidade de um sol que cada um trazia a meias dentro de si e que se uniu escaldando a adolescência de ambos.
Quinze anos somavam naquele dia em que o cheiro das plantas se embrenhou com o dos seus corpos juvenis, perto da roda da azenha da velha ponte medieval, confundidos com o ranger das tábuas, cada um sentindo o rio passar dentro de si.
Inês era de uma beleza sem igual. Deus quando a criou, escondeu o molde, não fosse uma qualquer confusão dar azo a uma repetição da criação, estragando a originalidade das suas feições: O fino recorte dos lábios, os olhos rasgados numa pele macia e cândida, os ombros protegendo um busto suave onde dois generosos seios lembravam redondas laranjas.
Aquela deusa caminhava delicada nas suas formas esbeltas. Um rabo que de tão redondo dava novo sentido à circunferência, pernas compridas que começavam nuns pés de dedos meigos e terminavam no estreito delta da sua púbis. Costas direitas, assentes sobre quadris de sonho e uma lagoa ao fundo das mesmas, com uma ilhota a subir das águas; dois dedos abaixo, a linha do desejo dividia aquele corpo em dois gomos sumarentos.
A pele morena de Pedro contrastava com a brancura da sua amada. Os longos cabelos escuros, cada vez que se misturavam com os fios de oiro do de Inês, pareciam ganhar um brilho novo. Alto, porém de formas magras, com os dedos longos das mãos a terem a medida certa do braço da viola, que tocava como ninguém.
A música era só a segunda paixão depois de ter começado a namorar com a filha única de Faustino Arroja, comerciante de bacalhau, homem tão seco quanto o norueguês petisco, de um olhar soturno e tão afiado quanto a lâmina da guilhotina que o punha às postas.
O abastado negociante, logo que soube do namoro dos dois, barafustou e amaldiçoou aquela união, a meio de uma espanholada confeccionada por dona Helena, sua assustada mulher, que um dia arrancou a uma adolescência que não lhe pertencia, mas que dela se apropriou, engravidando-a na flor de uma meninice, a mesma de sua filha Inês, a quem agora negava o direito de amar.
Inês fugiu daquela mesa transformada em tribunal, levou nos pés os gritos do pai, acusadores, que a alma, essa ansiava pelo reencontro dos passos de Pedro, pelos acordes da sua viola, pela voz de veludo nos versos que fazia e a quem emprestava os dedos, acariciando cordas, fios de emoção dedilhados na mestria que se pode ter aos quinze anos.
Encontrou-o no lugar de sempre, caneta riscando o papel. Esboços de poemas acotovelando-se para conseguirem espaço na folha.
A sua musa acariciou-lhe os cabelos, envolveu-se braços nas pernas, cabeça descansada sobre os joelhos, fitando o seu amor, ternamente, sem falar…
Pedro, apesar da breve idade que tinha, era um inspirado e criativo músico, autor de letras já maduras, como que espantosamente sacadas a uma alma que já havia vivido antes, experimentado, numa outra dimensão, numa qualquer outra história de vida.
Não sabia muito bem como é que isso lhe acontecia, o que é certo é que cada vez que escrevia era como se o tempo parasse. Como se escrevesse num espaço em eterno fuso horário.
De todos os temas, o amor, era aquele que mais o entusiasmava, até porque a sua cumplicidade com Inês foi ganhando com o tempo contornos de paixão transbordante, que o trazia em constante inspiração criativa.
O que o poeta não sabia é que, durante quase dois anos, Inês havia sofrido na alma e no corpo as agruras causadas por um pai autoritário, que não poucas vezes havia recorrido à violência física, como punição por aquela paixão proibida, manchando de uma dor maior ainda, o desgosto e frustração que sentia.
Sofreu em silêncio, com uma mãe que com ela chorava, lágrimas de um sal cortante, que ardia na face, lágrimas pelo corpo todo.
Faustino Arroja não gostava de Pedro, pela mesma razão de ódio que tinha à sua mãe, com quem no passado manteve relação amorosa, e que o havia deixado pelas mesmas razões de mau carácter, que a vida aguçou e se evidenciavam no presente, na relação de quase escravatura que mantinha com os seus funcionários, com a família.
A mãe de Pedro ficou viúva anos mais tarde, do casamento que viu nascer o jovem, tinha este, onze anos de idade.
Regressando à terra de origem, procurou levar uma vida tranquila, trabalhando e educando o rapaz numa ternura de cumplicidade, de verdadeira compreensão. Eram como irmãos, mãe e filho.
Arroja estava decidido a não desistir daquele amor doentio; despeitado, nunca desistiu de reconquistar Maria Augusta, a quem as constantes investidas do comerciante causavam irritação e constrangimento.
Pedro teve noção daquilo que se passava, quando as manhãs deixaram de trazer o sorriso angelical de Inês, quando uns olhos belos se substituíram por outros, encovados, tristes.
O tirano e perturbado pai, chegou ao ridículo de vigiar cada passo da filha, de a encerrar no cárcere da sua própria casa, impedindo que esta se encontrasse com o seu amor, que trocasse uma só palavra que fosse e, chegou mesmo ao ponto extremo da agressão, quando socou violentamente Pedro, num dos cada vez mais raros encontros entre os dois apaixonados.
Nunca mais Pedro sorriu nos olhos de Inês, nunca mais aquela sereia se deu desprendida aos seus braços longos, nunca mais os dias foram iguais aos dias felizes, em que libertos se misturavam com a natureza, com as águas do rio que os viu nascer, numa melodia sempre nova, que Pedro retirava, mordendo o lábio, à viola que tinha dentro de si.
Sentiu que perdia a cada dia a sua amada, que esta anoitecia antes da hora e que o seu tempo, já não era o tempo fora do tempo, eterno fuso a fiar a sua escrita, a sua vontade de cantar o mundo, o amor, livre de tudo, de todas as barreiras.
A tristeza tomou conta de ambos, remeteu-os a uma solidão forçada. Já não se encontravam, trocavam mensagens escondidas no bolso salgado de Miguel, empregado do pai, fiel amigo e companheiro dos tempos da escola e da inocência, que ia e voltava com lágrimas em forma de carta e promessas de amor eterno.
Uma noite, em que o malévolo cangalheiro se deslocou ao Porto em negócios, encontraram-se furtivamente. Inês deslizou suavemente por uma janela sempre aberta na sua alma, deslizou delicada, vestido branco comprido que desprendia um corpo que parecia acontecer nas estrelas daquela noite, transparecendo solto no luar, anunciando um dia novo, um novo dia.
Fizeram amor, intensamente, como pode e deve ser o amor aos dezassete.
Fizeram-no livres, de tudo, de todos.
Fizeram-no!
Num último olhar, num beijo molhado que nunca foi de sal, antes mel, do mais doce mel. Olhos nos olhos, confiantes no dealbar de um novo poema, de uma canção a duas vozes, dueto de emoções partilhadas.
A manhã daquele dia de Março acordou com os dois amantes abraçados no topo do prédio, um pouco mais perto do céu, como dizia a canção de que gostavam.
A um passo só da libertação, como se a imortalidade lhes tivesse sido prometida à distância de um só passo.
E deram-no!
Confiantes e seguros. Mão na mão, olhos nos olhos, felizes.
…………………………………………………………………………………………………………………………………
Os sinos, pesarosos tocaram dentro de toda a gente, a história de Pedro e Inês chegou mais longe que os chorosos sinos.
Na capela mortuária duas urnas, duas, que assim o impuseram Maria Augusta e dona Helena, as mães numa dor sem fim na morte dos seus filhos, mas renascidas contra tudo, contra todos…
O serviço fúnebre foi longo e emocionado, o pároco, também ele moço novo ainda, lembrou aos presentes o quão efémera pode ser a vida e grande e imortal o amor, que Deus não deixaria por certo de acolher quem tão apaixonadamente se deu ao outro.
Quase no final, o amigo Miguel, companheiro muitas vezes da música e das palavras, aproximou-se do altar, fitou os presentes nos olhos, pelos olhos do seu amigo, cujo bolso ensanguentado das calças continha uma nota póstuma, para ser lida no dia do funeral, último desejo de Pedro.
Era um poema e Miguel disse-o assim:
Memória de um sonho de voo
Voamos sobre todas as casas
Eu e tu, naquela suave manhã
Não precisamos de bater asas
Nem amor foi palavra triste e vã
Os meus olhos eram teus
no último segundo de mim
E eram nossos os olhos meus
Na eternidade do doce fim
Os meus lábios nos teus colados
Traziam-te nos meus beijos dada
E eram nossos os poemas falados
Na suave ternura da boca beijada
Digo-te até já minha flor de lótus
Encontramo-nos onde tu sabes
Na distância sublime dos corpos
Para que te não fines nem acabes
A brisa levou-nos para nós
Na serenidade do voo breve
Já ninguém mais cala a voz
De quem arrisca e se atreve
Pedro, 21 de Março de 2007
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
Conto: A culpa
Miguel crescera com a mesma rapidez com que as canas do canavial rompiam a terra, aí por alturas de Maio, quando a primavera já não precisava de se anunciar pelo assobio sincopado das andorinhas atarefadas dos beirais.
Ontem, de cueiros pelo quintal da avó, aparava ás árvores o tempo que os frutos por amadurecer clamavam, enfiado nos calções de ganga que o penduravam por umas alças à liberdade dos estendais.
Foi quase ontem, pela janela da sua alma que não sustentava paredes ao teto estrelado do seu quarto, que viu a noite sorrir-lhe nos olhos doces de Maria, entreabrindo-lhe as portadas de uma intimidade tão doce quanto o anseio dos frutos por cumprir nos ramos.
Foi quase homem nesse dia, aquele que lhe trouxe o cheiro das rosas por desabrochar, envolvido num outro que já pressentira antes, um cheiro de menina moça a subir pelo corpo e a ancorar amarras na boca, língua de areia que se deixa penetrar por um vocábulo de mar, onda que vai e vem na fogosa praia dos sentidos da adolescência
Hoje como ontem, Miguel não pede licença para entrar, quando as moçoilas da aldeia exalam seus cheiros.
A vida tinha os dias contados, um após outro, em contas de merceeiro, diga-se a verdade!
Miguel guardava o açúcar do lado do sol, o que irritava profundamente a José Anastácio, austero bigode a desfiar a superfície comercial que explorava, paredes- meias com o cabeleireiro de sua esposa, dava-se a criatura pelo nome de Bernardette.
Guardava-o lá, ao pé do sal, bem ao lado das rubras faces das damas que frequentavam a mercearia, escape do dia a dia penoso, servido pelas mãos do galante empregado como terapia.
O negócio corria de popa em popa.
Anastácio sabia do potencial do rapaz e depositava nele as mesmas expectativas que Bernardette e metade da população feminina de Lanços de Baixo. Saltar-lhe em cima!, – sejamos francos.
Miguel sabia disso.
Sabia que os dias se contavam em gramas, quilos; de sorrisos, de palavras como gemidos.
Sabia que a fruta amadurecia nos olhares trigueiros em tempo da colheita, cada vez que as damas empurravam o carrinho dos dias iguais no chão polido da Mercearia de Anastácio e os olhos deslizavam como bogalhos até se perderem no corpo atlético do belo moço que servia o tempo sem tempo, numa quase alquimia, que as trazia escorrendo em fio.
Um fio que embrulhava os desejos, os mesmos desejos desembrulhados nas cabeceiras das camas dos maridos que iam à caça, favor que o garboso rapaz fazia a quem procurava caçar os chifres – estranha semelhança com a vida real, pois o tiro que disparavam era sobre o próprio pé…
Bernardette era impossível de aturar. Cada vez que a chave na ignição pedia licença ao pé de chumbo de Anastácio para arrancar a carripana das compras à cidade, cada vez que o falso dobrar não dava em nada, já o pezinho matreiro e apressado da loira cabeleireira levava rolos nos pés para o disfarce comprometido.
Miguel era um rapaz generoso, tanto ouvia a sua voz fazer eco nas semi-virgens donzelas, como se via ao espelho narcísico, das doridas mazelas de mulheres feitas.
Feitas de truques e disfarces, para todas as ausências, mais aquelas que não eram sentidas., pelos anafados maridos, atarefados em refilar o tiro perdido…
Respiravam-se bons ares naquela mercearia sem preço ou contrapartidas, onde Miguel fazia contas de somar os afectos mais os carinhos dados e não subtraía nada nem pedia nada em troca.
Certo dia, porém aconteceu , aquela alma tão dada aos outros, perdeu-se de amores pela filha de um abastado negociante de gado, pessoa de um só olho, mirrado, mas que havia dado ao mundo, pelo menos se diz, através de sua bela mulher,( uma brasileira que lhe havia sido recomendada pelo primo, homem do ramo das padarias, por terras de Vera Cruz,) a mais deliciosa pérola
O pai não estava disposto a deixar colher a sua pérola, nem que fosse à lostra.
Miguel e Paula partiram com malas que não eram de cartão, levaram nelas o egoísmo da paixão e a pena das mulheres.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------
Depois de alguns anos e muito trabalho pelo estrangeiro, constou-se pelos coçados bancos da Igreja da aldeia de Lanços de Baixo que o casal de apaixonados estava bem na vida, que o rapaz tinha tirado um curso de computadores.
Paula, assim se chamava a nossa pérola colhida, era uma mulher simples, mas belíssima. Entretinha os dias, sedando-os com a leveza do seu olhar e doces formas.
Os deuses comiam bagos abancados…
Porém, o sombrio destino, que nestas coisas anda sempre escondido, um dia bateu à porta com a doença. O casal quase nem tempo teve para perguntar quem era. Primeiro adoeceu Miguel, depois Paula, aquela ninfa de olhos verdes, cuja serenidade cheirava à terra molhada, cujos cabelos traziam anjos brincalhões; gravemente…
Algo os chamava, num período adiantado da maleita de que padeciam, a voltar à terra que os viu nascer, nem que fosse para aí contarem, em contas de mercearia, os dias sem tempo marcado para acontecer. Todos os que fossem possíveis.
Chegaram de carro.
Abriram as janelas das suas almas e quase não conseguiram suster um grito de dor. A Vila estava deserta. Havia um estranho silêncio por todo o lado, um rastro de abandono de desolação. Cacos e vidros por todo lado, nos olhos…
Com o espanto e a estupefacção como caminho, dirigiram-se na direcção da Mercearia de Anastácio, a velha mercearia que ali jazia irreconhecível. O barulho de uma porta a ranger trouxe consigo a desconfiança de uns passos com dificuldade em calçar a suja e degradada calçada.
Perguntaram o que tinha acontecido ao dono da loja, paredes- meias com o cabeleireiro destruído, homem de bigodes austeros a desfiar falsos arranques de carro. A resposta levou a única direcção de um dedo em riste, que apontou e desapareceu para a colina da Moura.
Era um edifício rectangular, com janelas opacas, pairando como uma nave espacial sobre a aldeia e a planície.
Á medida que se aproximavam, tiveram uma estranha sensação a percorrer-lhes a espinha, um arrepio de morte, outra que anda escondida, mas está em todo lado. E estava ali, tinham disso agora a certeza.
Na porta uma sigla: S A P D C S
Por baixo em letras pequenas, mas gigantes no significado:
Serviço Ambulatório para Doentes Com Sida de Lanços de Baixo
Entraram, pelo seu próprio pesadelo a dentro, como se entrassem na sua própria casa, na sua própria terra fria…
A um canto um velho. O bigode amarelecido tinha agarrado uma face magra por um fio, um fio de doença, um fio de solidão.
José Anastácio fitou os olhos de Miguel e Paula, fitou-os com um olhar meigo, bondoso, sereno como os Deuses gostam. Abriu o casaco, retirou, como por magia a mais reluzente e madura das maças, vermelhas, rubras de vida, de maturidade dando-a generoso a Miguel.
As paredes sem teto, com janelas agarradas daquela alma abriram-se e ouviram-se da sua boca ferida as últimas palavras:
- A culpa não foi tua.
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
Ontem, de cueiros pelo quintal da avó, aparava ás árvores o tempo que os frutos por amadurecer clamavam, enfiado nos calções de ganga que o penduravam por umas alças à liberdade dos estendais.
Foi quase ontem, pela janela da sua alma que não sustentava paredes ao teto estrelado do seu quarto, que viu a noite sorrir-lhe nos olhos doces de Maria, entreabrindo-lhe as portadas de uma intimidade tão doce quanto o anseio dos frutos por cumprir nos ramos.
Foi quase homem nesse dia, aquele que lhe trouxe o cheiro das rosas por desabrochar, envolvido num outro que já pressentira antes, um cheiro de menina moça a subir pelo corpo e a ancorar amarras na boca, língua de areia que se deixa penetrar por um vocábulo de mar, onda que vai e vem na fogosa praia dos sentidos da adolescência
Hoje como ontem, Miguel não pede licença para entrar, quando as moçoilas da aldeia exalam seus cheiros.
A vida tinha os dias contados, um após outro, em contas de merceeiro, diga-se a verdade!
Miguel guardava o açúcar do lado do sol, o que irritava profundamente a José Anastácio, austero bigode a desfiar a superfície comercial que explorava, paredes- meias com o cabeleireiro de sua esposa, dava-se a criatura pelo nome de Bernardette.
Guardava-o lá, ao pé do sal, bem ao lado das rubras faces das damas que frequentavam a mercearia, escape do dia a dia penoso, servido pelas mãos do galante empregado como terapia.
O negócio corria de popa em popa.
Anastácio sabia do potencial do rapaz e depositava nele as mesmas expectativas que Bernardette e metade da população feminina de Lanços de Baixo. Saltar-lhe em cima!, – sejamos francos.
Miguel sabia disso.
Sabia que os dias se contavam em gramas, quilos; de sorrisos, de palavras como gemidos.
Sabia que a fruta amadurecia nos olhares trigueiros em tempo da colheita, cada vez que as damas empurravam o carrinho dos dias iguais no chão polido da Mercearia de Anastácio e os olhos deslizavam como bogalhos até se perderem no corpo atlético do belo moço que servia o tempo sem tempo, numa quase alquimia, que as trazia escorrendo em fio.
Um fio que embrulhava os desejos, os mesmos desejos desembrulhados nas cabeceiras das camas dos maridos que iam à caça, favor que o garboso rapaz fazia a quem procurava caçar os chifres – estranha semelhança com a vida real, pois o tiro que disparavam era sobre o próprio pé…
Bernardette era impossível de aturar. Cada vez que a chave na ignição pedia licença ao pé de chumbo de Anastácio para arrancar a carripana das compras à cidade, cada vez que o falso dobrar não dava em nada, já o pezinho matreiro e apressado da loira cabeleireira levava rolos nos pés para o disfarce comprometido.
Miguel era um rapaz generoso, tanto ouvia a sua voz fazer eco nas semi-virgens donzelas, como se via ao espelho narcísico, das doridas mazelas de mulheres feitas.
Feitas de truques e disfarces, para todas as ausências, mais aquelas que não eram sentidas., pelos anafados maridos, atarefados em refilar o tiro perdido…
Respiravam-se bons ares naquela mercearia sem preço ou contrapartidas, onde Miguel fazia contas de somar os afectos mais os carinhos dados e não subtraía nada nem pedia nada em troca.
Certo dia, porém aconteceu , aquela alma tão dada aos outros, perdeu-se de amores pela filha de um abastado negociante de gado, pessoa de um só olho, mirrado, mas que havia dado ao mundo, pelo menos se diz, através de sua bela mulher,( uma brasileira que lhe havia sido recomendada pelo primo, homem do ramo das padarias, por terras de Vera Cruz,) a mais deliciosa pérola
O pai não estava disposto a deixar colher a sua pérola, nem que fosse à lostra.
Miguel e Paula partiram com malas que não eram de cartão, levaram nelas o egoísmo da paixão e a pena das mulheres.
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Depois de alguns anos e muito trabalho pelo estrangeiro, constou-se pelos coçados bancos da Igreja da aldeia de Lanços de Baixo que o casal de apaixonados estava bem na vida, que o rapaz tinha tirado um curso de computadores.
Paula, assim se chamava a nossa pérola colhida, era uma mulher simples, mas belíssima. Entretinha os dias, sedando-os com a leveza do seu olhar e doces formas.
Os deuses comiam bagos abancados…
Porém, o sombrio destino, que nestas coisas anda sempre escondido, um dia bateu à porta com a doença. O casal quase nem tempo teve para perguntar quem era. Primeiro adoeceu Miguel, depois Paula, aquela ninfa de olhos verdes, cuja serenidade cheirava à terra molhada, cujos cabelos traziam anjos brincalhões; gravemente…
Algo os chamava, num período adiantado da maleita de que padeciam, a voltar à terra que os viu nascer, nem que fosse para aí contarem, em contas de mercearia, os dias sem tempo marcado para acontecer. Todos os que fossem possíveis.
Chegaram de carro.
Abriram as janelas das suas almas e quase não conseguiram suster um grito de dor. A Vila estava deserta. Havia um estranho silêncio por todo o lado, um rastro de abandono de desolação. Cacos e vidros por todo lado, nos olhos…
Com o espanto e a estupefacção como caminho, dirigiram-se na direcção da Mercearia de Anastácio, a velha mercearia que ali jazia irreconhecível. O barulho de uma porta a ranger trouxe consigo a desconfiança de uns passos com dificuldade em calçar a suja e degradada calçada.
Perguntaram o que tinha acontecido ao dono da loja, paredes- meias com o cabeleireiro destruído, homem de bigodes austeros a desfiar falsos arranques de carro. A resposta levou a única direcção de um dedo em riste, que apontou e desapareceu para a colina da Moura.
Era um edifício rectangular, com janelas opacas, pairando como uma nave espacial sobre a aldeia e a planície.
Á medida que se aproximavam, tiveram uma estranha sensação a percorrer-lhes a espinha, um arrepio de morte, outra que anda escondida, mas está em todo lado. E estava ali, tinham disso agora a certeza.
Na porta uma sigla: S A P D C S
Por baixo em letras pequenas, mas gigantes no significado:
Serviço Ambulatório para Doentes Com Sida de Lanços de Baixo
Entraram, pelo seu próprio pesadelo a dentro, como se entrassem na sua própria casa, na sua própria terra fria…
A um canto um velho. O bigode amarelecido tinha agarrado uma face magra por um fio, um fio de doença, um fio de solidão.
José Anastácio fitou os olhos de Miguel e Paula, fitou-os com um olhar meigo, bondoso, sereno como os Deuses gostam. Abriu o casaco, retirou, como por magia a mais reluzente e madura das maças, vermelhas, rubras de vida, de maturidade dando-a generoso a Miguel.
As paredes sem teto, com janelas agarradas daquela alma abriram-se e ouviram-se da sua boca ferida as últimas palavras:
- A culpa não foi tua.
FIM
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
sábado, 8 de setembro de 2007
Conto: (A) traídos pelo Hi5 - Uma história (im) possível
Carla – 23 anos - sensual
Estado civil: digo-te depois
Orientação sexual: bissexual
Localidade: Braga
Date men, Date Women
Carla apresentou-se pelo nome.
Descobrira o Hi5 na coscuvilhice tosca que se esconde matreira, entre a necessidade de fazer o trabalho de história da faculdade e uma espécie de impeditivo súrúrú de gritinhos, gemidos sob disfarce, risinhos entre-pernas das coleguinhas de curso, boquiabertas no plasma repartido da sala cibernética.
Trazia-lhe o nome pendurado por um cursor. Agora que tinha aderido ao grupo: 56 amigos e amigas adicionados, 82 visitas ao perfil, achava-se capaz de arriscar:
Rui – 35 anos – sensual
Estado civil: comprometido
Orientação sexual: digo-te depois
Localidade: Braga
Date men, Date Women,
Make friends
Carla tinha uma relação com Pedro, 22 anos, aprendiz da vida, rapaz para duas únicas paixões: uma pelo fitness e tudo o que tivesse a ver com malhas justas no corpo e outra por carros.
Carla não sabia bem de qual menos gostava, se aquela que implicava Gillete após Gillete, um amontoado de pelos entupindo o chuveiro, se o escape livre do bólide a fazer as delicias do trolha, pendurado por um andaime ao desejo.
Tinha decidido escapar.
Fugiu por um fio de rato, à distância de um click, numa sala sem gritinhos. O único que ouvia era aquele que lhe dizia bem alto: - Escapa!
Escapou pela porta dos fundos da moleza do companheiro, no preciso momento em que o Gabriel Alves fazia uma aborrecida dissertação sobre os estádios ingleses. Pareceu-lhe, maliciosamente apropriado…
Encontraram-se num Hi-Bar de circunstância, Rui trazia na lapela a altivez de um homem experimentado, o cabelo loiro deixava um rasto fulvo nas damas que ardiam, olhares em Web-Cam. Carla ardia.
Ardia de um fogo de dentro, portais bem abertos de uma alma jovem, disposta a correr riscos, todos os necessários para ser feliz, hora não taxada do encontro consigo mesma.
Deixaram os livros pendurados à cabeceira da noite, que a hora não era disso. Fingiram, cada um o suficiente para se sentirem felizes um com o outro. Choraram lágrimas de sémen, refastelaram-se em incertas paisagens.
A tépida luz do dia trouxe à baila, na saia rodada daquela alma que se pensava livre, a esperança de um dia de pássaros, de animais que falassem.
Carla ardia, ardia perdida de um homem, que tardava e a consumia, nas horas sem fim à vista; nas fogueiras por apagar do desejo, por todos os rio mudos sem praia para desaguar, ao Sul de todos os Nortes.
Às vezes pensava para consigo própria, na doçura da idade, que tudo se resolveria, que a vida se encarregaria de a fazer feliz, que na ida e volta das vagas do tempo, sobraria a espuma dos dias felizes. Mas eram poucos…
Para Carla, a ideia de trair era uma ideia com ida e volta. Começava grande na frustração do dia a dia e, acabava pequena na erecção do companheiro, logo depois da novela.
Tinha traído o companheiro e lidava bem com isso.
Rui não lidava e também nunca quis ser toureiro, mas no fundo, no fundo sempre cravou farpas na relação que mantinha com Joana, seu par.
Impar foi o número que tirou Joana, também ela cybernauta, presença assídua no Hi5 nas ausências do marido, escape excitante pelo grupo, pelas fotos sensuais, pelos rapazes de pénis erecto na mão, mesmo que não fossem eles, mesmo que não sejam eles, que o desejo não tem rosto, mas é eléctrico.
Pedro, 22 anos –sensual
Estado civil: Comprometido
Orientação sexual: Digo-te depois
Localidade: Braga
Date Men, Date Women
A foto era explicita. Pedro fotografara-se do peito para baixo e o seu garbo, naquela perspectiva, inflamava qualquer greta.
Joana sentiu-se inflamada, tanto que não resistiu a passar a sua mão de dedos finos pelo triângulo rendado da sua leve tanga, a princípio com suavidade, depois num roçar que afastou tudo; o não pensar, o não se importar, o importar-se muito com o prazer.
Um rio barulhento…foz segura…
Marcaram encontro, para nunca mais, o sexo por obrigação do casamento e o cru fastio da ternura fingida. Foram padrinhos o Teatro e a poesia.
Joana, 32 anos – sensual
Estado civil: Comprometida
Orientação Sexual: Bissexual
Localidade: Braga
Date Men, Date Women
Segura era como se sentia, quando deixou que o roncar do cabrio falasse por si. Segura era como se sentia, quando o puxador da porta do carro a rasgou no meio da noite daquele dia, vestido negro e tudo, meias rendadas presas por um fio, um fio de desejo que a atravessou inteira, elástico desejo que a transportou.
Sentiu-se presa na mais doce das liberdades, rabo nu sobre as ervas, rolando por todos os dias encravados como unhas, todos os dias em que não conseguira ser verdadeiramente ela, mulher.
Da noite primeira daquele dia, ficou para Joana uma certeza, nem literatura nem esperteza, ela queria era ser puta, daquele dia e de todas as noites seguintes.
Puta que não se vende mas se dá. Puta sem sentido prejurativo. Puta sem sentido nenhum…
Carla não.
Não quer ser, agora que descobriu de novo o prazer, com um homem mais velho, a menina dos caprichos hormonais, quer conhecer mais…
Quer conhecer para além daquilo que o seu amante nunca realizou com a mulher, quer conhecer o cheiro que tem uma rosa desabrochada, o sabor que tem uma mulher quando amada.
Conhece a vida por dentro e, dentro dela, a adolescência foi ontem quase, povoada de memórias excitantes, do beijo com o primo Fredo às carícias com a amiga Matilde no celeiro do pai, primeiro orgasmo que a marcou com o ferro incandescente do erotismo.
Carla acordou com o seu novo amigo, adicionar à relação uma mulher, ou um casal.
O encontro teria lugar discreto e aconteceu.
Aconteceu pelo hi5 que todos partilhavam, à distância sustentável de um clicK.
Carla adicionou Joana. Adicionou-a com saliva à sua libido, deixou-se penetrar pelo desejo, deixou que o desejo de conhecer alguém amadurecido se cumprisse.
Joana trouxe o amante Pedro para a noite das surpresas. A noite em que quatro estranhos conhecidos deram de caras com uma espécie de destino que os ligou.
Ligou-os com rendas das mulheres, num frenesim de emoções sem par. Ninguém sabia quem amava nem quem traía, nem sequer isso era importante; excitante era o termo…
Mantiveram todos quatro, uma relação que durou um tempo sem tempo. Episódio após episódio, numa novela da vida real, big brother explicito e carnal a que ninguém assistiu de fora.
As vontades e anseios de cada um, fundiram-se na proporcional medida em que não existe proporcionalidade nenhuma no desejo sem limites, existe prazer e esse, todos o conheciam, até um dia…
…………………………………………………………………………………………….
Esse dia foi uma longa noite. A noite em que cada um, mesmo com os olhos bem abertos, não viu para além daquilo que o prazer, perversamente forjou
Carla chorou por ela dentro, a gravidez que lhe aconteceu por computador, por cada um dos responsáveis, por cada uma das pen introduzidas, sem saber qual transportou o vírus, mas não chorou a partida do companheiro. Pedro partiu.
Partiu ao meio um filho, episódio bíblico de mau gosto, mas não levou a sua metade.
…………………………………………………………………………………………….
(vinte anos depois…)
Rui Pedro descansa tranquilo recém-saído da caresystem que a programação inteligente da casa lhe destinou para final desse dia de agenda complicada. Na flor da idade gere um negócio próspero, filho que é das novas tecnologias, do arrojo e da visão situada de um futuro que é presente
Para um empresário requisitado como ele, nada melhor que cuidar do corpo e da alma numa ocasião especial como esta: Fora avisado por mensagem que tinha sido efectuado com sucesso o download de um holograma de Pedro.
Refastelou-se no sofá, toalha-meias com o veludo rosa do imponente recato. Accionou o playlist e desfrutou um strip de emoções porque Pedroquarentão@Cyber.com, que por essa tecnologia tão real, ali mostrava todos os seus atributos, envolto em malhas finas e lingerie, era tal e qual o amigo da mãe na fotografia da lareira. Uns valentes anos mais novo, é certo, mas a marca do peito não enganava, bem como a covinha peculiar no queixo redondo.
-Ele há cada coincidência…pensou Rui Pedro…
Rui Pedro era gay – toda a gente o sabia.
Fim
Apresentação do Livro, por Manuel Saiote : 21/Jul/2007 11:13
José... por acaso!
Quando, pela primeira vez li um texto do José Torres, fiquei com a certeza de que tinha lido algo de um dos escritores mais expressivos e fortes no universo da escrita portuguesa. Exagero? Não, de forma nenhuma. Apenas a constatação de que, entre os desconhecidos, quem escreve pode ser tão bom ou melhor que muitos dos que são propagandeados.
“A criação” é o título daquela que foi a minha primeira leitura do autor. Um texto curto (com o tamanho exacto para não cair na asneira vulgar), de traços “bocageanos” e cheio de conteúdo:
/O poeta nu / sentou sobre uma cadeira /o pesado cu /e masturbou um poema / Nasceu o Tu / e tinha acne / Era grande e pesado / cheirava a peixe e partiu / O poeta que o pariu / fui.”
Li-o como uma forma muito própria (brilhante, até!) do autor se apresentar, usando o texto como um óptimo cartão de visita. Nele tudo é torneado e polido pelo contexto, denunciando a habilidade e a arte do poeta no manuseamento das palavras tornando-as (todas) poesia.
O José Ilídio Torres é, podemos dizer, um realizador ímpar de obras escritas. Quem o lê, inevitavelmente, fica a olhar para a sua obra com olhos de ver, ler, sentir, cheirar e saborear. A maestria com que rege a sua orquestra de palavras tem o dom de cativar a leitura pela criatividade, vivacidade e dinâmica da escrita.Diz, em certo ponto que nasceu poeta:
/ "Nasci poeta / metade profeta / metade pateta / e não fui o primeiro”
noutro, que amarrotou e chutou a má poesia para longe,
/ “amarrotei a má poesia / esmaguei-a e chutei-a / para longe / para o mar / que a enrolou / de onda em onda /
/ de vento em vento / de pôpa em pôpa / até cair na areia / moribunda e reles...”
ou que se deita nas palavras,
/ “...nas palavras me deito / com elas escrevo as noites
verso após verso contando as horas / que as noites demoram a se deitar / nas palavras me deito / com elas me cinjo” /
de facto, o poeta é e faz tudo isso e mais... conta histórias. E fá-lo com a mesma medida e arte que usa na poesia.A sua versatilidade em termos de estilo e forma de texto e temática, faz dele uma espécie de homem-palavra multifacetado, com uma enorme sensibilidade e capacidade para a produção literária, não se amedrontando com temas perigosos ou de difícil equilíbrio numa linha de bom gosto e educação.
Leiam-se os seus temas eróticos ou os de crítica mais cáustica e entender-se-á o sentido deste comentário.
O homem destila as palavras, filtra-as e reconstrói-lhes os sentidos. Não há muitos que o consigam fazer com uma amplitude tão grande como o José.
Em jeito de conclusão direi que, quando, por obra do acaso, nos deparamos com um escritor da estirpe do José Torres, que consegue navegar na escrita sem pedir meças a nenhum ilustre, que consegue ser poeta, prosista, intervencionista e amigo que imortaliza os seus amigos com alma e mão de grande escritor... devemos seriamente questionar: Mas o que é que andamos por aí a ler quando só por acaso se conhecem os nossos grandes escritores?
Manuel Joaquim Matias Saiote (Comunicador)
Poema:"A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos
envenenou-os de um fel sem nome
numa mágoa sem praia ou areia
onde estender o teu sorriso antigo
agora branco de uma cal egípcia
que te pinta o rosto
e te seca os veios.
A tristeza matou os peixes
que já não procriam no sol posto
nem desovam no delta dos teu seios
nem saltam os obstáculos dos açudes
imponentes e viçosos
como quando te davas em feixes
nos dias quentes de Agosto
A tristeza matou os peixes
secou os lagos dos teus desejos
levou para o mar todo o sal
que trazias ancorado nos teus beijos.
Agora és um barco encalhado
num lodaçal de deslizantes enguias
que serpenteiam pelo teu ser adentro
extasiadas pelo cheiro podre da madeira
e te povoam o ventre molhado
na contagem decrescente dos dias.
Esse pássaro que risca o céu
saudoso dos peixes em boliço
e avista a tua carcaça no ilhéu
é a tua alma
mas tu não sabes disso.
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
envenenou-os de um fel sem nome
numa mágoa sem praia ou areia
onde estender o teu sorriso antigo
agora branco de uma cal egípcia
que te pinta o rosto
e te seca os veios.
A tristeza matou os peixes
que já não procriam no sol posto
nem desovam no delta dos teu seios
nem saltam os obstáculos dos açudes
imponentes e viçosos
como quando te davas em feixes
nos dias quentes de Agosto
A tristeza matou os peixes
secou os lagos dos teus desejos
levou para o mar todo o sal
que trazias ancorado nos teus beijos.
Agora és um barco encalhado
num lodaçal de deslizantes enguias
que serpenteiam pelo teu ser adentro
extasiadas pelo cheiro podre da madeira
e te povoam o ventre molhado
na contagem decrescente dos dias.
Esse pássaro que risca o céu
saudoso dos peixes em boliço
e avista a tua carcaça no ilhéu
é a tua alma
mas tu não sabes disso.
in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007
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