“…Uma sebe três anos…Um cão três sebes…Um burro três cães…Um homem três burros…”
Assim falou João de Barbudo, homem do tempo em que a tuberculose matava tanto como a fome, numa mesma míngua de cuidados; uma porque a cura por vezes matava, outra porque também…
Desde cedo, Mestre João, carpinteiro de todas as coisas mais aquelas que não tinham arranjo, se habituou a recolher às arvores o fruto, ao mosto o vinho, à caridade a broa.
Mais novo de sete irmãos que já partiram e o Senhor os tenha. Mais velho de todos.
Oitenta e um anos de vida, alguns de França, lá pelos anos em que se passava a salto, que havia homens da raia que o faziam a troco de ficarem.
Ficarem num país de meia sardinha, batata, pão de milho e tabaco estrangeiro, para fumar em dias de irmãos que chegam, mesmo assim menos raros que os dias de fome e falta, que eram todos os outros.
Tempos houve, em que os galos de capoeiro, enfraquecidos, não cumpriram os desígnios ovulares para que eram talhados, e os retalhos da franga deram carne que se visse, um pouco mais além da canja. Ovos sequer para as horas sem dormir dos dias de estômago acordado.
O cognome Barbudo acompanhava-o, mesmo tendo a face limpa. De Barbudo, porque assim se chama a terra que o viu nascer, a dois passos de Braga, mais concretamente quinze kilómetros, feitos a pé, em fato curto e apertado, com cheiro a comunhão solene feita há mais anos que o prazo de duração que tinha o Bilhete de Identidade caducado.
A ida à grande cidade era um acontecimento maior que o velho castanheiro que matava a fome pelo Outono, que a castanha servia para todos, mesmo para o porco enfezado, que nesses Outubros ganhava cor e um certo garbo.
- Eram outros tempos, esses tempos de miséria…Disse isto enquanto fazia dama no tabuleiro de companhia diária, perante o desagrado do jovem jogador de cabeça cansada de ser coçada.
- Chico traz aí uma taça que paga o moço.
- Olhe que a partida ainda não está perdida, refilou um pouco ansioso o condenado.
- Condenado a não pagar, que Mestre João sempre fazia questão de não aceitar, no preciso momento em que uma certa vergonha e desilusão puxava da carteira para cumprir a pena…
Era uma espécie de lição gratuita de civilidade, de fair-play, palavra que não lhe dizia coisa nenhuma.Gostava mesmo era de jogar.
Podia ser às damas, ao dominó, ou às cartas. Acompanhava-o desde novo uma especial apetência para os jogos, mais uma estrelinha de sorte, que lhe trazia as cartas precisas na altura certa, ou a distracção de uma má jogada do opositor no momento ideal.Toda a gente lhe reconhecia a sagacidade e lhe elogiava o bem jogar. O seu nome era admirado de pai para filho, vivia nas histórias de jogo e até nas de pesca, onde aí também a sua mestria dava cartas.
Não havia rio ou riacho na região que não lhe conhecesse os passos silenciosos, que em vez alguma os galhos tombados das beiradas tiveram algo a dizer, nem truta que fosse lhe fugiu por causa de um descuido de bota a estalar o caminho sorrateiro dos amiais.
Todos se perguntavam do porquê de descobrir com facilidade os locais onde o peixe tranquilo se escondia, de adivinhar os seus movimentos, as suas insondáveis vontades e caprichos.
Parecia que lhes tomava vantagem, esperando-os na curva da surpresa, onde a fome avista a minhoca e a abocanha decidida.
Aos oitenta e um, João de Barbudo não é homem de hábitos rígidos. Para além das duas idas diárias ao café da aldeia, mais ninguém lhe consegue seguir os passos e, há dias até, em que o fiel “pintas” lhe não põe olhos e língua em cima, e não tem outra alternativa que não seja ladrar á anafada vizinha da casa em frente, esperando uma caridade em forma de osso.
A sua independência e autonomia rivaliza com a de todos os outros idosos, para quem o simples percorrer de caminho de casa à igreja se assemelha a um calvário, várias vezes feito, como se procurassem expiar os pecados de uma existência curvada ao peso de anos, amparando-se na bengala da rotina.
Naquele sábado á noite, dia de futebol na televisão, levou-o ao café do Chico uma vontade de beber um brandy morno e um café, que o cigarrilha, essa trazia-a de casa para uns momentos de gozo de fumo, gesto que não repete muitas vezes, mas que faz com verdadeiro prazer, expirando largamente o fumo que não chega a engolir.
Ao fundo joga-se sueca.
Velho João, que não é velho, gosta de se sentar a ver o jogo sem dizer palavra, ao contrário de muitos a quem só lhes falta jogar a carta pelos intervenientes. Uma coisa irritante…
O Espanhol refila sempre, mas é um belíssimo jogador, dos mais respeitados, mais não seja pelo vozeirão habituado a competir com as barulhentas rebarbadeiras que usa na sua actividade.
O Manel Fininho, rapaz mais novo, é seu parceiro nesse dia e já esgotou todas as teorias para se justificar perante o Espanhol da opção de jogar a bisca. Sem sucesso.
Com as duas “caralhadas” sonantes que lhe são dirigidas, Manel fica a desconfiar até da própria existência.
A selecção está a ganhar por três a zero o que retira interesse ao jogo, mas não ao de cartas. Chegou ao café um par já conhecido, homens da Barca, gente costumeira nos jogos a dinheiro.
Distinguem-se pelas samarras de gola de pele e pelo enchumaço da carteira no bolso de trás. Deixaram o Opel Kadete GT Turbo a refilar na rua com um cão menos interessado em marcas.
O Chico, o dono do estabelecimento gosta dessas emoções. Gosta de apostar o que tem e, às vezes o que não tem. Gosta da sensação de poder desafiar o destino que lhe querem reservar, de vinho a copo e diárias ao meio-dia.
Uma ou outra vez havia provado o sabor azedo de fel da perda, centenas de contos de uma só vez, dizem.
Naquele dia o comerciante tivera uma espécie de premonição de sorte, coisa vulgar entre os jogadores de cartas, uma espécie de sintoma de vício, que o jogador identifica mas é incapaz de combater.
Assim, quando os forasteiros lançaram de um trago a ideia de um joguito a dinheiro, logo Chico, de coração na boca largou um entusiasmado:
- Vamos a isso!
O avental soltou amarras da cinta e espalhou-se amarrotado num dos cantos da arca frigorífica, com ele o cheiro a carne e molho da refeição do dia.
Passou os dedos engordurados no cabelo e quase sentiu uma réstia de cheiro do After-shave Dénim que a mulher lhe compra na mercearia do Neca.
Estava pronto.
De uma prontidão quase sufocante, o grupo das cartas foi conduzido para lugar mais recatado, nas traseiras do café, fechando-se portas para quem vinha de fora, que por aquela hora também seriam poucos.
João de Barbudo ficou na sala, estava a saber-lhe bem o Brandy e ainda voltaria a acender o puro. Nunca quisera saber de jogos a dinheiro e também não seria hoje o dia.
Dos fundos começava a chegar o eco das primeiras emoções. Barulho de dedos a bater na madeira, vozes a acompanha-los, seguidas de decididas análises à jogada, como que explicando o óbvio a quem via.
Chico estava a ganhar. Corria-lhe bem o jogo e ele até já sabia que iria ser assim. Tinha-lhe soprado ao ouvido um anjo vestido de valete na noite anterior.
Estava entusiasmado e mandou o moço buscar uma rodada para toda a gente.Acontece que tão depressa como começou a ganhar, com a mesma volúpia, começou a correr atrás do prejuízo, apostando cada vez mais dinheiro, subindo paradas em cujas franjas já não tocavam fanfarras, que a desilusão geral da assistência já não fazia bater as baquetas da sorte.
A coisa estava negra, tão negra como a noite que se adivinhava lá fora. Os vidros embaciados, mistura de ressoado ar e sujidade, que escorria agora para dentro do desconsolado jogador. Em pouco tempo voaram do seu bolso os dias todos de apuro da semana e já assinava cheques, coisa que só fazia para pagar a alguns fornecedores, num febril e alucinante ritmo.
Estava perdido. De um desespero enganado de que ainda dava a volta ao resultado, o mesmo desespero que por certo acompanhava os Arménios, a jogar com Portugal e a perder por quatro ao fim de 89 minutos.
João, carpinteiro da vida, tinha aprendido a escutar os silêncios, mais os ruídos surdos do desânimo. Apercebeu-se de que algo se passava. De muito mau.
Chico suava mais que um porco enfezado antes de Outubro. Estava à beira de naquele poker de emoções, perder anos de trabalho, de vida dura como a madeira dos pipos, de se desgraçar…A determinada altura, a perder mais que o que algum dia lhe fosse possível ganhar, arriscou tudo…
- Jogo tudo o que perdi, por troca com o meu café. Com uma condição:
- joga por mim as últimas partidas, defendendo a minha honra, Mestre João de Barbudo…
Os elementos da mesa, mais os dois “estrangeiros” em ar de conluio, riram-se da pretensão…
- Já disse! Resmungou, agarrando-se à fama de Mestre João, que ainda nada sabia do assunto.
Procurou-o pelo cheiro do charuto que da sala se encostava às paredes, chegando sem avisar à mesa de jogo. Só agora o havia sentido. Só agora.
- João, você foi amigo de meu pai…começou por dizer.
- Foi, dizem por aí até, namorado de minha mãe antes de meu pai chegar aqui para se estabelecer…
- Preciso que me ajude, por favor.
O de Barbudo, continuou mudo.
- Rogo-lhe por tudo que jogue por mim e tente recuperar o meu dinheiro, a minha casa, a minha vida. Por favor, repetiu.
Mestre João levantou-se, apagando um nada de tabaco negro sobre o barro pintado do cinzeiro.
- Com uma condição, disse o velho, que não era velho.
- Qualquer uma, respondeu-lhe o aflito jogador, ganhando um pouco de cor.
- Jogarei por ti na condição de que será a última vez que o faço. Nunca mais tocarei num baralho de cartas, nunca mais jogarei jogo algum que seja, apagarei da memória todos os dias passados, todas as lições que dei, todos os que nunca souberam perceber o jogo e o seu prazer.
- Tu farás o mesmo, sem nunca o teres chegado a compreender…
O aflito disse que sim com a cabeça, mas não chegava. Era preciso a palavra.
Essa que o vento leva enrolada noutras, que formam bola, todas juntas, novelos de cada um, meada que ninguém segura do outro lado do fio.
- Prometo-lhe Mestre. Juro-lhe pela minha mãe.
- Jura-me por ti, por quem és. Não jures por quem não está, já partiu.
- Jura-me pelos dias todos em que te vi crescer!
- Jura-me porque estive por perto!
- Jura-me porque te guardei no peito sempre!…
- Juro.João de Barbudo que não o era, acercou-se da mesa de jogo, cumprimentou olhando cada um nos olhos.Foi recebido com respeito.
Desviaram-se cadeiras nos olhos cansados de alguns, arrumaram-se copos num soslaio.
O jogo final estava lançado. Distribuídas as fichas, alinhadas as cartas, e um bater nervoso de pé de alguém que a toalha escondia…
- Full house, e João recolhe as fichas.
- Poker de valetes!
- Full de ases e recolhe o dinheiro perdido e alguns cheques…
Passadas poucas jogadas, que a parada era alta, João jogador que deixaria de ser, velho que não era, olhou o adversário final que lhe restava. Nos olhos, mais uma vez.Viu-lhe a alma, e o outro sentiu um arrepio, que iludiu num trago que lhe esmurrou o estômago.
- Vamos a isso, disse o da Barca engolindo a azia que lhe retornou ao sítio de onde veio e novamente á boca numa baforada sem aviso.
- Tudo ou nada, quase soluçou…
Chico acenou apressado com a cabeça.Mestre João disse-lhe:
- Lembras-te do que prometeste?
- Sim, respondeu rubro e cabisbaixo.
- Ergue a cabeça então e vê a tua vida em cada carta que eu levantar. E seja qual for o resultado disso, aprende.
O Coupier lançou em quase slow-motion as cartas para a mesa. As vozes pareciam demorar uma eternidade a sair das gargantas, sinalizando as opções.
Era decisiva a carta que levantaria.Ou completava a sequencia Royal que tinha de copas ou o bluf do outro, do da Barca, terminaria ganhando com dois pares, que não tinha mais que isso…
Faltava-lhe a dama. A de corações partidos, a que um dia o deixou para outro sem aviso. A que partiu para a terra funda, sem nunca ter dito uma palavra que fosse de conforto, nem que isso fosse uma espécie de murro no estômago…
Recolheu a carta.Levantou-a para os olhos verem. Brilharam rubros ao fundo, na primeira imagem que os outros viram através deles.
Era uma copa sim a carta.
Mas não era a dama…
Francisco Milheiro, o Chico, caiu redondo no chão que já não era seu. Já nem isso tinha.
Mestre João de Barbudo recolheu o baralho da mesa guardando-o no bolso, mais o casaco da cadeira. Colocou o seu chapéu de aba, abriu a porta com cuidado e saiu.
Nos meses que se seguiram, a vizinhança deixou de ouvir ladrar o cão.
O “pintas” tem comido por casa. A sua actividade e aspecto cuidado é quase a única garantia que têm de que João de Barbudo, jogador extraordinário de todos os jogos, está bem.
Deixou de sair, é avistado de fugida algumas vezes a enrolar estranhos cordéis, fazendo novelos que depois deixa largados no jardim.
Ninguém sabe bem o que lhe irá na alma. Contam-se já as histórias que se transmitirão nos tempos futuros, de geração em geração.……………………………………………………………………………………………..............
Um dia o “pintas” voltou a ladrar à porta da anafada Gorete costureira.
Mas não foi por um osso.Ladrou para avisar que o dono partira. De vez. Numa viagem sem regresso.
Estava deitado tranquilo na cama quando foi encontrado. Vestia o fato que habitualmente levava para a pesca, as botas de borracha, e ao lado a cana truteira alinhada com o cacifo.
O funeral foi simples. Como não tenha família viva, o cortejo fúnebre conseguiu levar algumas gentes da terra, mais uns velhos, que eram mesmo velhos, seguros por bengalas de tédio.
Segurando o caixão, numa das abas, Francisco Milheiro, bilhete de identidade caducado por falta de uns trocos, o Chico.
O que também era de Barbudo.
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Recolhido por caridade em casa de um amigo da freguesia, Chico nessa noite fechou-se no quarto, barriga de fome dilatada, para uma noite mal dormida, agachado como um ovo nos seus pensamentos.
Bateram à porta.
O Fredo disse de fora:
- Ó Chico, está aqui um oficial de justiça para falar contigo…
Abriu a porta desdobrando-se sobre si mesmo, como que arcando com a consequência lógica de um final sem história…
Mas a história era outra.
- Sr, Francisco Milheiro?
- Sim, sou eu.
- Venho notificar o Sr. de que na próxima sexta-feira, pelas 14,00, na Secretaria do Registo Notarial, será lido o testamento de João Afonso Morgado, tendo o Sr. sido arrolado como herdeiro.
Não queria acreditar em tal coisa. Herdeiro?
Ele que havia perdido tudo, e até, pensava, a consideração de Mestre João.
No dia indicado deslocou-se ao local de leitura previsto. Quando pensou que estariam lá outras pessoas, estranhamente ele era o único. Ele e o Notário. Olhos nos olhos cabisbaixos de Francisco.
- Passo a anunciar os bens em testamento de João Afonso Morgado:
- Uma casa sita no lugar de Pena
- Um valor em dinheiro de 193.234 euros.
- Uma carta e um baralho de cartas para ser entregue a Francisco João Milheiro de Sousa.
E dizendo isto entregou o envelope e o baralho ao Chico, referindo que essa era, antes de mais, a vontade do falecido.
Dizia assim:
Caro Francisco,
Espero que ao receberes esta carta te encontres bem contigo próprio.
Fui-me embora, desculpa.
Deixei de ouvir o barulho da água, que sempre ouvi, mesmo sem ir à pesca.
Deixei mesmo de saber falar com os peixes.
Podes não entender o que te digo, mas acredita que se parares para ouvir o teu coração, se desejares muito isso, sentirás todos os rios dentro de ti, todas as cachoeiras da alma a fluir no teu peito.
Tenta…
Há palavras que nunca te direi. Desculpa-me por isso.
Vive cada dia da tua vida como se fosse o primeiro dia. E como me lembro ainda disso…
Deixo-te todos os meus bens. Guardei ao longo dos anos tudo aquilo que não me fez falta, não é muito, é um começo de nova vida para ti.
Espero que a promessa que me fizeste de que nunca mais jogarias se mantenha até ao final dos teus dias.
Por ti.
Nota: Naquele dia, naquele último jogo, a carta a sair deveria ser a dama de copas, como te recordarás. Se a procurares no baralho que recolhi nessa noite da mesa, não a encontrarás.Faz disso a primeira lição da tua nova vida.
FIM
Conto a incluir no meu próximo livro. Todos os direitos registados
2 comentários:
ao ter que escrever a tua biografia do livro apresentado aqui na biblioteca, quando o Dr. Victor me chamou já estava na página 27... fiquei sem palavras...
Parabéns, Zé Ilídio
fico feliz por ti
Emília (ou Milinha do escondidinho irmã da Ilda)
Li...
Diante deste teu conto que acabo de ler... sinto-me como se terá sentido o Xico...diante da verdade do velho que não era velho!!!!
E... não tenho mais palavras...
...
Parabéns, José Ilídio!
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