terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Rio do Esquecimento


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Tapeçaria de Almada Negreiros existente no Hotel de Santa Luzia em Viana do Castelo
" Comandadas por Décios Junos Brutos, as hostes romanas atingiram a margem esquerda do Lima no ano 135 aC. A beleza do lugar as fez julgarem-se perante o lendário rio Lethes, que apagava todas as lembranças da memória de quem o atravessasse, os soldados negaram-se a atravessá-lo. Então, empunhando o estandarte das águias de Roma o comandante chamou da outra margem a cada soldado pelo seu nome. Assim lhes provou não ser esse o rio do esquecimento."
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«Com relação ao rio Lima, história e lenda encontram-se tão interligadas que nem sempre é fácil delimitar onde acaba uma e começa outra.
Foi sempre a beleza do rio a provocar encómios e o sentimento de incapacidade duma expressão condigna a atrair o poder sugestivo da lenda.
Vem dos velhos tempos o processo. Estrabão designou-o por Beliom e relata ter ocorrido nas suas margens um episódio militar entre Túrdulos e Célticos.
Iam já a atravessá-lo quando surgiu entre os dois povos uma discórdia.
Lutaram e foi o sangue do próprio comandante que se juntou ao de muitos outros a macular a brancura das águas.
Desorientados ficaram os soldados e, sem comando, se dispersaram pelas margens, em luta pela sobrevivência.
Lucano chamou-lhe o "Deus do Tacitus", em virtude da mansidão com que corriam as suas águas.
Tito Lívio denominou-o "Rio do Esquecimento" ("Oblivionis fluvis ou flumen").
Surgiu, então, a sua identificação como Lethes da mitologia, que tinha o condão de provocar em todos os que o transpusessem o olvido do passado e da própria pátria.
Campos Elísios passaram, em consequência, a apelidar-se os que circundavam, isto é, as suas margens.
Mais semelhantes a jardins, no conceito mitológico; onde, segundo o testemunho de Políbio, só durante três meses do ano as rosas não floriam.
E ainda Estrabão que nos diz ser esta a terra perfeita por qualquer fugitivo de Roma.
Dentro deste condicionalismo, aqui chegaram um dia, sob o comando de Décios Junos Brutos, as legiões romanas, com as altivas águias a tremularem nos pendões.
Vitoriosas haviam pisado as terras que estavam para sul e propunham-se prosseguir.
Desciam, a justante, dos lados de Ponte de Lima e teriam iniciado a jornada desse dia em Vitorino das Donas:
"Daqui saiu Bruto pelos campos tão celebrados com o nome de Elysios a procurar lugar em que com o seu exército pudesse vadear as cristalinas águas do Lethes tão respeitadas com a fabula virtude de encantadoras." (João de Barros, Antiguidades de Entre Douro e Minho).
Encontravam-se no lugar da Passagem e fácil pareceu ao comandante a travessia.
Nesse sentido emitiu ordens, mas encarniçada se revelou a resistência dos soldados, conhecedores como eram dos poderes sortílegos atribuídos às suas águas.
Não perdeu ele a serenidade nem achou conveniente procurar convencê-los por meio de palavras.
Tomou a bandeira, ergueu-a ao alto, transpôs o vau e, já da outra margem, a muitos chamou pelo nome e incitou a seguirem-lhe o exemplo.
Por esse meio os convenceu de que, afinal, não era verdade o que a lenda propalava.
Assim exaltado nos advém, das mais longínquas eras, o fascínio deste rio que até aos nossos dias tem sido cantado por todos quantos puderam contemplá-lo.»
Conde de Bertiandos, in Lendas, 1898.

Conto: O Rio do Esquecimento Por: José Ilídio Torres

Festejava-se no acampamento romano a vitória desse dia do homem sobre a lenda, do poder de chefia de Júnio sobre as forças da natureza.
Os soldados comiam e bebiam junto às fogueiras acesas na noite, que todavia não precisava delas para iluminar as formas. A lua era gigante nos céus, e parecia juntar-se à celebração, rendida à valentia e coragem daquele comandante.
A sombra das lanças cruzadas e das águias nos pendões, difundia-se pelos chãos, na confiança longa da caminhada que os trouxera de sul.
Perto da margem, os cavalos bebiam da tranquilidade do Lethes, que inundava de roseiras os terrenos. Pequenas e bravias, mas rubras de um sangue adivinhado. Apesar de tudo, longe daquele que foi derramado ao tempo de Viriato, e que por aqueles anos era já só uma memória vaga de resistência e valentia na voz dos velhos anciãos dos povos daqueles lugares.
Outrora unidos na defesa de um território, corria sangue Celta e Ibério, nas veias dos que eram também lusitanos.
O astuto Viriato conseguiu durante anos unir culturas diversas em torno de um ideal de defesa, infligindo amarguradas humilhações aos romanos invasores, dispostos a alargar o seu império do ocidente, conquistando esta terra de enorme valor estratégico no controlo das rotas.
Matou-o a traição daqueles que controlava com pulso de ferro, que não resistiram ao brilho e esplendor das armas, ao garbo do invasor, ansiosos que estavam por uma riqueza fácil e uma união prometida.
Mas isso já era passado. A noite daquele dia pertencia ao descendente dos Brutus romanos, cujo nome haveria de ficar intimamente ligado à história da Gloriosa Roma, que estenderia os seus tentáculos de poder por mais quatro séculos no ocidente.
Por isso, bebiam os homens com tempo, a cerveja ( uma bebida de fermentação que já se fazia nessa altura) saqueada nas aldeias, e rodeavam-se das virgens que deixavam de o ser em noites de euforia como estas e que acompanhavam os exércitos no seu caminhar, roubadas aos pais, mais todos os alimentos e animais necessários às tropas.
As mais belas moças estavam destinadas ao comandante e seus chefes militares.
Naquele dia Brutus achou que merecia a mais bela. Mandou chamar para o seu leito uma jovem de cabelos cor de trigo, agarrados ao longo de um entrançado de flores, filha de um druida que encontraram num pedaço de floresta, e que vivia sozinho com ela.
A rapariga apareceu à sua beira trespassada pela luz do exterior. Numa túnica branca que lhe foi dada a vestir, sem mais nada por debaixo, depois das mulheres a terem perfumado em banho de rosas colhidas às margens.
O heróico comandante tremeu com a sua beleza, ele um homem bravo e destemido. O seu corpo tinha as formas do rio, de braços longos e mãos finas, como se uma deusa se tratasse. Os olhos de água, cheios de um brilho que ofuscava, como se fazendo parte daquele que a lua exalava.
Chamou-lhe Roma.
Possui-a como um bárbaro. Ofegante. Várias vezes. Sem que em nenhuma delas a moça mexesse os olhos abertos, ou cerrasse os lábios desenhados por um estranho sorriso..
O sangue da sua desfloração, colara-se à barriga e ao sexo do invasor daquele corpo sereno como as águas do Lethes.
Brutos adormeceu extasiado da bebida e daquela prenda dos deuses com que se lambuzara, sonhando com a sua Roma de circos, de comércio, esplendor e prosperidade, sentindo-se dela um filho dedicado.
Nessa noite fora também amante dela no corpo belo de uma outra, e não viu nem reparou quando esta deixou a tenda caminhando, libertando os cabelos antes cerrados por flores, em passos que abriam olhos de luz na terra como se rosas germinando se tratassem.
Passou por alguns soldados ébrios que não conseguiram sair da intenção de a agarrar, continuando a sua imperturbável caminhada até entrar nas águas, que não mexiam à sua passagem, para grande espanto de alguns romanos que a observavam de perto.
Todos pensaram que tal facto se deveria à bebida ingerida, esfregando os olhos para sair daquele estado de alucinação ou miragem, mas sem resultados práticos.
Alguns tentaram caminhar na sua direcção, mas sentiram as pernas presas, incapazes de se moverem.
A jovem desapareceu numa tranquilidade de morte nas águas do rio, e durante alguns minutos o silêncio foi total no acampamento. Nem um único ruído. Até que os cavalos começaram a relinchar como loucos, levantando as patas no ar, tentando a todo o custo libertarem-se das cordas, tornando impossível que qualquer um chegasse perto.
Foram avisar o comandante daquilo que se passava, vindo este embrulhado no pano que o cobria até junto das águas, na esperança de ver aparecer o corpo da malograda rapariga, que todos pensaram, ele próprio incluído, havia escolhido a morte como fuga.
-Paciência, não faltariam mulheres bonitas na caminhada. E em todas desembainharia a sua libido. – Foi o que pensou quando já se retirava novamente para a tenda para descansar. Porém algo estava diferente na noite. Como se a luz da lua tivesse crescido de intensidade, transformando em manhã a noite curta.
E assim permaneceu, até a lua se retirar e um sol forte e quente se ter erguido por detrás do promontório.
Ninguém conseguiu dormir nessa noite, e os soldados falavam já da maldição das águas, temendo que o esquecimento se apoderasse deles com efeito retardado.
Quando se levantou, e enquanto se lavava, Júnio reparou numa mancha escura que ocupava todo o seu sexo e barriga, e que teimosamente se tinha entranhado na pele, por mais que lavasse, por mais que esfregasse. Quase entrou em pânico, pois quanto mais tentava, mais escurecia aquela nódoa de cor avermelhada, marca de sangue da noite anterior que não o largava.
Decidiu não fazer qualquer comentário acerca daquele facto, pois que nervosos já se encontravam os soldados, ansiosos por largar aquele lugar dos mágicos acontecimentos da noite anterior.
Assim fez. Mandou preparar as tropas e ninguém olhou para trás quando a marcha se iniciou, convencidos que haviam perturbado os deuses naquela travessia, temerosos como não convinha para as investidas que se adivinhavam.
Ninguém viu conforme se foram afastando, um corpo nu a surgir vertical das águas, um corpo imaculado de mulher, que caminhou sobre elas até à margem e se firmou na terra, fazendo nascer rosas à medida que se afastava em sentido contrário à marcha da legião.

Os séculos passaram. Uns atrás dos outros. A memória curta dos homens deixou para os historiadores os factos conhecidos da passagem dos romanos por estas terras do actual Minho. O Lethes chama-se agora Lima, e as suas águas passam a ponte de uma das mais antigas Vilas de Portugal.
Em Vitorino das Donas, no local aproximado onde há mais de dezanove séculos atrás se deu este episódio que contei, vive um homem de nome Júnio. (Nome que aparece algumas vezes na genealogia minhota. Estranhamente ou talvez não.)
É barqueiro. Atravessa algumas pessoas, poucas, que usam esse meio fluvial para chegar rápido á outra margem, em tempos de Verão, para se banharem nas águas e se refastelarem no areal branco que se avista do outro lado.
Certo dia em que conversávamos, o barqueiro, de cigarro que lhe ofereci aceso a um canto dos seus lábios e dedos queimados, contou-me uma estranha história:
Parecem falar os mais antigos da lenda da Senhora das Águas, que em manhãs de nevoeiro aparece nua como veio ao mundo nas águas daquele lugar. O meu interlocutor diz-me que ele próprio a viu quando era mais pequeno, juntamente com um primo que anda emigrado em França.
Parece que a “Senhora” fica por ali uns minutos, com uma estranha claridade nos céus, pairando sobre as águas serenas do Lima, transmitindo uma sensação de bem-estar e paz a quem a avista.
E é aqui que se dá o milagre que me conta, de olhos grandes, avistando-se neles ao fundo a sombra de uma vara estendida, sulcando as suas memórias.
…Há muitos anos atrás, vivia por ali um casal que se dedicava à agricultura e à moagem. Habitavam um moinho acima daquele lugar. Eram felizes, pois a terra era generosa para eles e faziam ainda bom dinheiro na moagem e cozedura do pão.
Tinham porém uma amargura na vida. A mulher não conseguia engravidar, e desejavam muito ter um filho.
As rezas nunca trouxeram o efeito desejado, muitos menos a copula. Era como se o seu amor fosse estéril, bem ao contrário da terra da qual eram filhos.
Certo dia em que passavam com o burro o açude seco, a mulher colocou mal os seus pés nas pedras, tombando para dentro da água. O aflito moleiro tentou por todas as formas salvar a sua amada, mas esta desapareceu nas águas, de cabelos trigueiros submergidos nas águas.
Mergulhou em vão para recuperar o seu corpo, e fizeram-no todo o dia em barcos os habitantes das cercanias, mas nem sinal do amor daquele homem.
Nessa noite, enquanto rezava, na vigília da sua tristeza, ouviu passos acercando-se do moinho, que estranhamente não se confundiam com o barulho das águas a correr nas pás. Nem o da pedra de moer, que pareciam ter-se calado.
Assim que veio ao exterior, uma estranha claridade estava por todo o lado, vinda de uma lua cheia, das maiores que algum dia havia visto.
Calçando-se da sua luz, a mulher que amava caminhava na sua direcção.
Estranhamente não conseguiu perguntar nada. Deixou-se só envolver nos seus braços longos, nos seus dedos finos, fazendo amor de corpos nus nas pedras gastas pelas rodas ferrugentas na calçada.
Passados nove meses, nasceu uma bela criança. Uma menina de olhos largos como o rio, a quem chamaram Roma.
E quando lhes perguntam porque o fizeram, fecham-se num sorriso de rosas que estava por todo o lado.”
Contei como me contaram.

1 comentário:

Anónimo disse...

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