Não sabia bem como lhe acontecia.
Dava por si de caneta em riste, papel branco desafiando-o a escrever a alma, uma alma de que desconfiava, porque era tenra a pena com que se cingia.
Tinha tão só meia dúzia de impertinentes pelos no rosto, tão poucos que o espelho se ria, cada vez que a lamina afiada decapitava borbulhas adolescentes, confundidas.
Porém, apesar do corpo não negar a idade curta que tinha e o selim da sua bicicleta nunca ter precisado de ser subido, pedalava nele uma espécie de ansiedade de viver, coisa estranha para um jovem da sua idade.
O refilar dos pais era uma espécie de campainha.
Soava-lhe alto nos tímpanos, tão alto, que por vezes nem a ouvia.
Perdia-se por inteiro em meias folhas de papel, caderninhos de merceeiro de capa dura, mata-borrão para copos de tinto distraídos em tascos de aldeia.
Frequentava-os numa altura em que não havia máquinas de tabaco com controlo remoto a partir do balcão, nem fumar matava.
Gostava de se perder nas histórias de bocas amarelecidas dos mais velhos, posta de bacalhau frito à espera de uma espinha para continuar a palavra arrancada pelo dedo sujo da poda ao palato entretido da conversa.
E como se perdia nesses relatos. A espaços sacava da orelha que tinha em cada conversa um afiado lápis para memória futura. Fazia-o inconscientemente.
A mesma inconsciência que o empurrava vereda acima pela adolescência, disposto a experimentar todas as sensações fortes que coubessem dentro dela.
Pelos dezasseis, dezassete anos, cadernos e cadernos de poemas escritos, palavra a palavra, sem espinhas.
Envolvia-o um amor sem rosto pelas letras. Como se alguém, quase certo um Deus, tivesse semeado dentro de si uma nesga-semente de vida, que nas condições ideais florescia em cada letra riscada, debitando segredos para dentro de folhas quase azuladas, no tempo das vinte e cinco linhas.
O seu nome, João.
Rapaz de um garbo fulvo que pelos cabelos ardia, de uns olhos verdes de água, que quem olhasse para dentro deles descobria peixes, e onde as namoradas ancoravam bocas sedentas de saber mais, um pouco mais além do que sabiam através da mão exploradora dos sentidos.
E como as amava. De cada uma retirava um poema, que depois colava noutro.
De cada uma um tema.
Os olhos de Joana, os dedos finos de Maria, os seios pequenos de Vera.
Vivia em todas: gentil, cavalheiro, dado.
Não sabia dizer que não, que pela boca morria traído pela bondade, essa que habita no conforto de se saber vivo nos outros, biógrafo das vidas, tudo menos alheias.
Por vezes, acontecia-lhe até o estranho facto de acordar a meio da noite, de poema escrito na cabeceira dos sonhos, que passava para o papel de uma vez só, de um só fôlego, num êxtase quase caricato a que só assistiam as riscas do pijama azul que a avó lhe ofereceu nos anos.
“…
Vieste do mar, meu búzio d’areia
E trazias no regaço um mar d’história
Corpo de sargaço, corpo de sereia
Num tempo de fadas sem memória
A praia do teu ventre d’água revelada
Encontrou-se nas areias dos meus pés
Cantando a noite e a doce madrugada
No bailado suave das águas das marés
Tomei-te na alma como quem diz
És tudo o que sempre sonhei
És tudo que eu sempre quis
Tomei-te no corpo, tua alma amei
Foi sempre isto que me fez feliz
Memória do mar que te lembrei”
E esta curiosa ligação com as palavras acompanhou-o pela idade adulta.
O gosto pelas letras levou-o à Faculdade, no primeiro encontro com as cadeiras poeirentas da velha teoria literária, mas também com a fervilhante actividade artística que acompanhava as lides académicas.
Apesar de algumas amizades feitas, o seu melhor amigo continuava a ser um livro.
O livro ainda não escrito, espécie de página branca do que falta dizer, ou folha preenchida de todas as perguntas sem resposta.
Nele se vestia dia após dia com a pele dos dedos, teimando por uma solução.
A que lhe respondesse à questão do poema escrito dentro dele, que lhe fazia dizer o amor antes de o sentir, a saudade antes da partida, a dor antes de a sofrer…
Era uma coisa estranha, essa que o levava a escrever textos antes do tempo, nomeando sentimentos que só vinha a experimentar anos depois de os ter narrado.
O amor estava em quase todos os poemas e um dia encontrou-o.
Foi numa manhã fria de Novembro. Passeava pela praia esquecido, completamente possuído pela bravia força com que as ondas do mar tomam a areia, de olhos largos no horizonte de pássaros e espuma.
Quase tropeçou nele, no momento em que desajeitado ficou segurando aquela ninfa nos braços, desculpando-se do seu intempestivo e descuidado caminhar.
- Mil perdões, conseguiu articular.
- Caminhava distraído…
- Eu reparei, respondeu-lhe olhos nos olhos a jovem.
E como era bela, de cabelos-sargaço e olhos fundos, num corpo que de tão gracioso apetecia tocar, sentir, cheirar.
- Posso desculpar-me, convidando-a para tomar um café?
- Claro que sim, anuiu.
Fizeram-no durante anos seguidos, que nunca mais se afastaram um do outro.
Viviam numa paixão transbordante de carinho e afecto e o escritor dedicava-lhe as melhores páginas que alguma vez escreveu, agora na sensação de que o tempo parara. Nem passado nem futuro, só o tempo presente contava, e não tinha a sensação já de que escrevia por antecipação os sentimentos vindouros da sua vida.
Rosário, assim se chamava aquela deusa, responsável pela alegria de viver de João, pela sua constante inspiração nas letras e na vida.
Certo dia, tomado por uma gripe aborrecida, daqueles que fazem tremer em pleno verão, João recolheu-se na cama aos mimos da sua amada, mais os chás quentes de ervas e mel, duplo conforto para o seu corpo dorido pelo virús.
Precisado de fazer chegar ao correio o original de mais um livro de poemas, que o seu editor aguardava com ansiedade, e impossibilitado de o fazer, logo Rosário de casaco pronto se dispôs a percorrer as poucas centenas de metros que separavam a sua casa da estação, cumprindo com agrado a missão de levar a passear as palavras que tão bem conhecia, uma vez que vivia nelas.
Despediu-se com um beijo que não chegou a tocar os lábios de João.
A porta da rua fechou-se atrás de si ligeira, que apressada era a vontade de regressar a casa e envolver de cuidados o seu amado, feliz pela dádiva desse amor correspondido.
João pressentiu o perigo num arrepio que não foi de gripe, um tudo nada antes da travagem demorada do carro, logo seguida de um abafado estrondo que lhe secou a garganta, incapaz de gritar.
Fizeram-no por ele as vizinhas.
Quando chegou à rua, andavam no ar ainda papeis, um dos quais, deslizando com suavidade, foi poisar no peito ferido da sua deusa que veio do mar, cabelos-sargaço enrodilhados no rosto, papel mata-borrão que absorveu lento o sangue.
Tomou-a desfalecida nos braços beijando o seu rosto e segredando no seu ouvido em forma de concha:
-Está tudo bem meu amor, estou aqui contigo.
A resposta não veio, só um cheiro a maresia por todo o lado e um vento norte levantando poeira na estrada.
As várias fracturas que sofreu no acidente demorariam tempo a curar, mas mais tempo demoraria a sua alma a acordar, pois caiu num coma prolongado, de diagnóstico muito reservado, olhos fechados por quatro paredes brancas de hospital.
João viveu pelos dois todos os dias acordado, dizendo poemas na cabeceira daquela cama, colocando flores junto ao seu rosto de traços finos, intocados pela violência do embate.
Passaram-se semanas, meses.
Num dia em que o sol andava alto, e a janela daquele quarto se abriu para o cumprimentar, o milagre aconteceu. Primeiro uma breve piscada, depois um pulsar quase nervoso da pálpebra, finalmente dois lagos de peixes abrindo em cor. Verdes profundos, verdes próximos, amados.
João gritou de alegria, de uma felicidade plena que ecoou pelo hospital e trouxe consigo na volta, médicos, enfermeiros, o rapaz da perna partida e a Senhora do quarto ao lado, mesmo tendo sido operada às varizes.
Os dias seguintes foram de enorme expectativa, de exames prolongados, análises a tudo e mais alguma coisa.
A ansiedade tomou conta do escritor, mas feita agora de razões diversas daquela que sentia em adolescente, quando tinha pressa de viver e experimentar todas as emoções fortes da existência.
Rosário havia perdido a memória, as lesões no cérebro afectaram-lhe a capacidade de recordar fosse o que fosse, incapaz de reconhecer o seu amado, de partilhar a emoção do reencontro, de se perder nas suas palavras, ditas pela boca da alma, retirando delas sentidos, causas.
Quando regressaram à sua casa, a dois passos da praia, no dia em que o fizeram, as gaivotas esperavam-na planando à volta do simpático moinho recuperado, gritando intervaladas, como se cada uma a quisesse cumprimentar. Rosário sorriu.
Começaria um processo longo de aprendizagem, o de nomear as coisas, de juntar pequenas peças ao grande puzzle da memória.
João estava determinado a ser persistente, e assim que a sua amada passou a soleira da porta, logo reparou em centenas de pequenos papeis escritos em cada coisa: Mesa, cadeira, cama, jarra, panela, copo, flores, poemas…
Era preciso começar do início, mesmo que Rosário não o reconhecesse como a sua metade, mesmo que perdida em pensamentos dispersos, em muito vagas lembranças de algo que não sabia dizer, não podia dizer.
Por vezes durante a noite acordava sobressaltada como se possuída de um medo terrível, que depois de desperta e confortada por João, não conseguia identificar, tombando a tez suada sobre a almofada, acabando por cerrar novamente os olhos.
João não escreveu mais nada nesses tempos que não fossem pequenos papéis, etiquetas para as coisas, que colava em cada peça, na esperança que um dia a luz inundasse a alma da sua amada e pudessem falar novamente a mesma linguagem.
Rosário quase não falava. Quando estava em casa, sentava-se na cadeira de baloiço, observando longamente o mar, embalada pelas águas das marés, ou nas asas das gaivotas que sempre a vinham cumprimentar, fazendo da sua casa o porto de abrigo de todas as horas.
Outras vezes, saía para demorados passeios pelo areal, recolhendo búzios e conchas que depois trazia no regaço e espalhava pelo jardim.
Refugiou-se num silêncio onda cabia a água do mar e as estrelas do céu.
Deixou de comunicar, mesmo com João. Os seus únicos amigos eram as gaivotas e o vento que as embalava.
Uma noite, em que o luar torna todas as coisas visíveis, fazendo das águas um espelho prateado, o poeta que tinha momentaneamente deixado de o ser, simplesmente porque já não escrevia, acordou sozinho na cama. Chamou por Rosário esperando que esta estivesse à distância curta de uma palavra, mas não.
Levantou-se e acercou-se do alpendre. A cadeira de baloiço que tinham comprado juntos na lojinha de móveis usados da vila, balançava ainda suavemente.
Quase instintivamente os seus olhos levantaram-se para o mar. Dentro de água, levantando pequenas ondas no forçar suave dos passos, a sua amada caminhava em direcção ao horizonte, onde uma lua gigante, das maiores que tinha visto, a parecia esperar refastelada.
Gritou:
-Rosário!
A ninfa de olhos verdes demorou um eterno segundo a voltar a cabeça em direcção ao areal, onde a sua camisa de linho estava caída, branca e amarrotada da forma como lhe deslizou do corpo.
Rosário levantou a sua mão de dedos abertos como que despedindo-se.
João correu, da mesma forma como o fez no dia do fatídico acidente, com o coração na boca, sôfrego e ansioso por socorrer a mulher amada.
E apesar de tão depressa o ter feito naquela centena de metros, conseguiu somente vislumbrar os cabelos-sargaço de Rosário a abraçarem as águas, submergida por fim dentro delas.
Entrou ele próprio no mar, nadando apressado em direcção à lua.
Quando pensou estar sobre o sítio onde o corpo desaparecera, mergulhou decidido.
A transparência das águas deixava ver com nitidez o fundo arenoso, aqui e acolá uma pedra, um peixe adormecido, mas nem sinal de Rosário.
Voltou a tentar, encheu largamente os pulmões de ar, que quase lhe doeram do esforço e mergulhou mais à frente.
Passou raso ao fundo, volveu o corpo para a direita e para a esquerda, subiu um pouco e de repente…no limite do fôlego, à sua frente, de cabelos abertos sobre as águas, olhos da mesma cor, sorrindo delicada na sua nudez, a diva dos seus poemas.
Esta abraçou-o e envolveu-o, tranquilizando-o.
Beijou largamente a sua boca dando-lhe o ar de que precisava para retornar à superfície, bateu num sulco rápido os seus pés juntos e desapareceu levantando areia do fundo.
Assim que João volveu à superfície, deixou de mergulhar.
Permaneceu sozinho boiando nas águas cálidas, fitando o horizonte pela estrada da lua.
…………………………………………………………………………………………….
Velho João não mais escreveu. Uma linha que fosse.
Vive no seu moinho onde poisam gaivotas que alimenta com algum peixe miúdo que traz da faina. Tornou-se pescador.
É vê-lo remendando redes na soleira de casa, ou simplesmente fumando o seu cachimbo na velha cadeira de baloiço, fitando o mar tranquilo.
Não faz nenhuma pergunta ao vento, sabe todas as respostas.
Dava por si de caneta em riste, papel branco desafiando-o a escrever a alma, uma alma de que desconfiava, porque era tenra a pena com que se cingia.
Tinha tão só meia dúzia de impertinentes pelos no rosto, tão poucos que o espelho se ria, cada vez que a lamina afiada decapitava borbulhas adolescentes, confundidas.
Porém, apesar do corpo não negar a idade curta que tinha e o selim da sua bicicleta nunca ter precisado de ser subido, pedalava nele uma espécie de ansiedade de viver, coisa estranha para um jovem da sua idade.
O refilar dos pais era uma espécie de campainha.
Soava-lhe alto nos tímpanos, tão alto, que por vezes nem a ouvia.
Perdia-se por inteiro em meias folhas de papel, caderninhos de merceeiro de capa dura, mata-borrão para copos de tinto distraídos em tascos de aldeia.
Frequentava-os numa altura em que não havia máquinas de tabaco com controlo remoto a partir do balcão, nem fumar matava.
Gostava de se perder nas histórias de bocas amarelecidas dos mais velhos, posta de bacalhau frito à espera de uma espinha para continuar a palavra arrancada pelo dedo sujo da poda ao palato entretido da conversa.
E como se perdia nesses relatos. A espaços sacava da orelha que tinha em cada conversa um afiado lápis para memória futura. Fazia-o inconscientemente.
A mesma inconsciência que o empurrava vereda acima pela adolescência, disposto a experimentar todas as sensações fortes que coubessem dentro dela.
Pelos dezasseis, dezassete anos, cadernos e cadernos de poemas escritos, palavra a palavra, sem espinhas.
Envolvia-o um amor sem rosto pelas letras. Como se alguém, quase certo um Deus, tivesse semeado dentro de si uma nesga-semente de vida, que nas condições ideais florescia em cada letra riscada, debitando segredos para dentro de folhas quase azuladas, no tempo das vinte e cinco linhas.
O seu nome, João.
Rapaz de um garbo fulvo que pelos cabelos ardia, de uns olhos verdes de água, que quem olhasse para dentro deles descobria peixes, e onde as namoradas ancoravam bocas sedentas de saber mais, um pouco mais além do que sabiam através da mão exploradora dos sentidos.
E como as amava. De cada uma retirava um poema, que depois colava noutro.
De cada uma um tema.
Os olhos de Joana, os dedos finos de Maria, os seios pequenos de Vera.
Vivia em todas: gentil, cavalheiro, dado.
Não sabia dizer que não, que pela boca morria traído pela bondade, essa que habita no conforto de se saber vivo nos outros, biógrafo das vidas, tudo menos alheias.
Por vezes, acontecia-lhe até o estranho facto de acordar a meio da noite, de poema escrito na cabeceira dos sonhos, que passava para o papel de uma vez só, de um só fôlego, num êxtase quase caricato a que só assistiam as riscas do pijama azul que a avó lhe ofereceu nos anos.
“…
Vieste do mar, meu búzio d’areia
E trazias no regaço um mar d’história
Corpo de sargaço, corpo de sereia
Num tempo de fadas sem memória
A praia do teu ventre d’água revelada
Encontrou-se nas areias dos meus pés
Cantando a noite e a doce madrugada
No bailado suave das águas das marés
Tomei-te na alma como quem diz
És tudo o que sempre sonhei
És tudo que eu sempre quis
Tomei-te no corpo, tua alma amei
Foi sempre isto que me fez feliz
Memória do mar que te lembrei”
E esta curiosa ligação com as palavras acompanhou-o pela idade adulta.
O gosto pelas letras levou-o à Faculdade, no primeiro encontro com as cadeiras poeirentas da velha teoria literária, mas também com a fervilhante actividade artística que acompanhava as lides académicas.
Apesar de algumas amizades feitas, o seu melhor amigo continuava a ser um livro.
O livro ainda não escrito, espécie de página branca do que falta dizer, ou folha preenchida de todas as perguntas sem resposta.
Nele se vestia dia após dia com a pele dos dedos, teimando por uma solução.
A que lhe respondesse à questão do poema escrito dentro dele, que lhe fazia dizer o amor antes de o sentir, a saudade antes da partida, a dor antes de a sofrer…
Era uma coisa estranha, essa que o levava a escrever textos antes do tempo, nomeando sentimentos que só vinha a experimentar anos depois de os ter narrado.
O amor estava em quase todos os poemas e um dia encontrou-o.
Foi numa manhã fria de Novembro. Passeava pela praia esquecido, completamente possuído pela bravia força com que as ondas do mar tomam a areia, de olhos largos no horizonte de pássaros e espuma.
Quase tropeçou nele, no momento em que desajeitado ficou segurando aquela ninfa nos braços, desculpando-se do seu intempestivo e descuidado caminhar.
- Mil perdões, conseguiu articular.
- Caminhava distraído…
- Eu reparei, respondeu-lhe olhos nos olhos a jovem.
E como era bela, de cabelos-sargaço e olhos fundos, num corpo que de tão gracioso apetecia tocar, sentir, cheirar.
- Posso desculpar-me, convidando-a para tomar um café?
- Claro que sim, anuiu.
Fizeram-no durante anos seguidos, que nunca mais se afastaram um do outro.
Viviam numa paixão transbordante de carinho e afecto e o escritor dedicava-lhe as melhores páginas que alguma vez escreveu, agora na sensação de que o tempo parara. Nem passado nem futuro, só o tempo presente contava, e não tinha a sensação já de que escrevia por antecipação os sentimentos vindouros da sua vida.
Rosário, assim se chamava aquela deusa, responsável pela alegria de viver de João, pela sua constante inspiração nas letras e na vida.
Certo dia, tomado por uma gripe aborrecida, daqueles que fazem tremer em pleno verão, João recolheu-se na cama aos mimos da sua amada, mais os chás quentes de ervas e mel, duplo conforto para o seu corpo dorido pelo virús.
Precisado de fazer chegar ao correio o original de mais um livro de poemas, que o seu editor aguardava com ansiedade, e impossibilitado de o fazer, logo Rosário de casaco pronto se dispôs a percorrer as poucas centenas de metros que separavam a sua casa da estação, cumprindo com agrado a missão de levar a passear as palavras que tão bem conhecia, uma vez que vivia nelas.
Despediu-se com um beijo que não chegou a tocar os lábios de João.
A porta da rua fechou-se atrás de si ligeira, que apressada era a vontade de regressar a casa e envolver de cuidados o seu amado, feliz pela dádiva desse amor correspondido.
João pressentiu o perigo num arrepio que não foi de gripe, um tudo nada antes da travagem demorada do carro, logo seguida de um abafado estrondo que lhe secou a garganta, incapaz de gritar.
Fizeram-no por ele as vizinhas.
Quando chegou à rua, andavam no ar ainda papeis, um dos quais, deslizando com suavidade, foi poisar no peito ferido da sua deusa que veio do mar, cabelos-sargaço enrodilhados no rosto, papel mata-borrão que absorveu lento o sangue.
Tomou-a desfalecida nos braços beijando o seu rosto e segredando no seu ouvido em forma de concha:
-Está tudo bem meu amor, estou aqui contigo.
A resposta não veio, só um cheiro a maresia por todo o lado e um vento norte levantando poeira na estrada.
As várias fracturas que sofreu no acidente demorariam tempo a curar, mas mais tempo demoraria a sua alma a acordar, pois caiu num coma prolongado, de diagnóstico muito reservado, olhos fechados por quatro paredes brancas de hospital.
João viveu pelos dois todos os dias acordado, dizendo poemas na cabeceira daquela cama, colocando flores junto ao seu rosto de traços finos, intocados pela violência do embate.
Passaram-se semanas, meses.
Num dia em que o sol andava alto, e a janela daquele quarto se abriu para o cumprimentar, o milagre aconteceu. Primeiro uma breve piscada, depois um pulsar quase nervoso da pálpebra, finalmente dois lagos de peixes abrindo em cor. Verdes profundos, verdes próximos, amados.
João gritou de alegria, de uma felicidade plena que ecoou pelo hospital e trouxe consigo na volta, médicos, enfermeiros, o rapaz da perna partida e a Senhora do quarto ao lado, mesmo tendo sido operada às varizes.
Os dias seguintes foram de enorme expectativa, de exames prolongados, análises a tudo e mais alguma coisa.
A ansiedade tomou conta do escritor, mas feita agora de razões diversas daquela que sentia em adolescente, quando tinha pressa de viver e experimentar todas as emoções fortes da existência.
Rosário havia perdido a memória, as lesões no cérebro afectaram-lhe a capacidade de recordar fosse o que fosse, incapaz de reconhecer o seu amado, de partilhar a emoção do reencontro, de se perder nas suas palavras, ditas pela boca da alma, retirando delas sentidos, causas.
Quando regressaram à sua casa, a dois passos da praia, no dia em que o fizeram, as gaivotas esperavam-na planando à volta do simpático moinho recuperado, gritando intervaladas, como se cada uma a quisesse cumprimentar. Rosário sorriu.
Começaria um processo longo de aprendizagem, o de nomear as coisas, de juntar pequenas peças ao grande puzzle da memória.
João estava determinado a ser persistente, e assim que a sua amada passou a soleira da porta, logo reparou em centenas de pequenos papeis escritos em cada coisa: Mesa, cadeira, cama, jarra, panela, copo, flores, poemas…
Era preciso começar do início, mesmo que Rosário não o reconhecesse como a sua metade, mesmo que perdida em pensamentos dispersos, em muito vagas lembranças de algo que não sabia dizer, não podia dizer.
Por vezes durante a noite acordava sobressaltada como se possuída de um medo terrível, que depois de desperta e confortada por João, não conseguia identificar, tombando a tez suada sobre a almofada, acabando por cerrar novamente os olhos.
João não escreveu mais nada nesses tempos que não fossem pequenos papéis, etiquetas para as coisas, que colava em cada peça, na esperança que um dia a luz inundasse a alma da sua amada e pudessem falar novamente a mesma linguagem.
Rosário quase não falava. Quando estava em casa, sentava-se na cadeira de baloiço, observando longamente o mar, embalada pelas águas das marés, ou nas asas das gaivotas que sempre a vinham cumprimentar, fazendo da sua casa o porto de abrigo de todas as horas.
Outras vezes, saía para demorados passeios pelo areal, recolhendo búzios e conchas que depois trazia no regaço e espalhava pelo jardim.
Refugiou-se num silêncio onda cabia a água do mar e as estrelas do céu.
Deixou de comunicar, mesmo com João. Os seus únicos amigos eram as gaivotas e o vento que as embalava.
Uma noite, em que o luar torna todas as coisas visíveis, fazendo das águas um espelho prateado, o poeta que tinha momentaneamente deixado de o ser, simplesmente porque já não escrevia, acordou sozinho na cama. Chamou por Rosário esperando que esta estivesse à distância curta de uma palavra, mas não.
Levantou-se e acercou-se do alpendre. A cadeira de baloiço que tinham comprado juntos na lojinha de móveis usados da vila, balançava ainda suavemente.
Quase instintivamente os seus olhos levantaram-se para o mar. Dentro de água, levantando pequenas ondas no forçar suave dos passos, a sua amada caminhava em direcção ao horizonte, onde uma lua gigante, das maiores que tinha visto, a parecia esperar refastelada.
Gritou:
-Rosário!
A ninfa de olhos verdes demorou um eterno segundo a voltar a cabeça em direcção ao areal, onde a sua camisa de linho estava caída, branca e amarrotada da forma como lhe deslizou do corpo.
Rosário levantou a sua mão de dedos abertos como que despedindo-se.
João correu, da mesma forma como o fez no dia do fatídico acidente, com o coração na boca, sôfrego e ansioso por socorrer a mulher amada.
E apesar de tão depressa o ter feito naquela centena de metros, conseguiu somente vislumbrar os cabelos-sargaço de Rosário a abraçarem as águas, submergida por fim dentro delas.
Entrou ele próprio no mar, nadando apressado em direcção à lua.
Quando pensou estar sobre o sítio onde o corpo desaparecera, mergulhou decidido.
A transparência das águas deixava ver com nitidez o fundo arenoso, aqui e acolá uma pedra, um peixe adormecido, mas nem sinal de Rosário.
Voltou a tentar, encheu largamente os pulmões de ar, que quase lhe doeram do esforço e mergulhou mais à frente.
Passou raso ao fundo, volveu o corpo para a direita e para a esquerda, subiu um pouco e de repente…no limite do fôlego, à sua frente, de cabelos abertos sobre as águas, olhos da mesma cor, sorrindo delicada na sua nudez, a diva dos seus poemas.
Esta abraçou-o e envolveu-o, tranquilizando-o.
Beijou largamente a sua boca dando-lhe o ar de que precisava para retornar à superfície, bateu num sulco rápido os seus pés juntos e desapareceu levantando areia do fundo.
Assim que João volveu à superfície, deixou de mergulhar.
Permaneceu sozinho boiando nas águas cálidas, fitando o horizonte pela estrada da lua.
…………………………………………………………………………………………….
Velho João não mais escreveu. Uma linha que fosse.
Vive no seu moinho onde poisam gaivotas que alimenta com algum peixe miúdo que traz da faina. Tornou-se pescador.
É vê-lo remendando redes na soleira de casa, ou simplesmente fumando o seu cachimbo na velha cadeira de baloiço, fitando o mar tranquilo.
Não faz nenhuma pergunta ao vento, sabe todas as respostas.
A incluir no meu próximo livro a editar brevemente.
Todos os direitos registados
7 comentários:
diz-me quando sai para eu comprar
da tua amiga mariaminha,que quase caminhou na estrada da lua...
...se a minha opinião tivesse valor...de certo o livro viria a ter exito...e terá de certo, pois escrto com entusiasmo e amor, como a amostra...será garantido.
Estou sem palavras perante a intensidade do conto José!
A história e linda e parace mesmo verdadeira... Mas acaba de forma tão triste.
Depois de tudo o que fez, do tempo que esperou por Rosário... o rapaz que escrevia poemas merecia um final feliz!
Lindo mesmo!! És de facto genial!
Um beijo grande
Os meus sinceros votos de BOAS FESTAS.
Espero que o Pai Natal seja generoso e que distribua muito amor, paz, saúde e carinho.
Mil Beijos ≈©≈♥Ňąd¡®♥≈©≈
Adorei ler este conto... já o li, reli e continuo a encontrar razões para o ler.
Qualquer um dos teus contos me prende, da primeira à última palavra.
Estou ansiosa por poder ter o teu livro!!!
Quando sai o livro João???
E tenho direito a autógrafo??
Vim aqui pela mão da Cleo. Excelente texto. E como eu disse lá no blog dela, escrevesse eu assim e conquistaria o Mundo.
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