segunda-feira, 26 de novembro de 2007

"O rapaz que escrevia poemas"




Não sabia bem como lhe acontecia.
Dava por si de caneta em riste, papel branco desafiando-o a escrever a alma, uma alma de que desconfiava, porque era tenra a pena com que se cingia.
Tinha tão só meia dúzia de impertinentes pelos no rosto, tão poucos que o espelho se ria, cada vez que a lamina afiada decapitava borbulhas adolescentes, confundidas.
Porém, apesar do corpo não negar a idade curta que tinha e o selim da sua bicicleta nunca ter precisado de ser subido, pedalava nele uma espécie de ansiedade de viver, coisa estranha para um jovem da sua idade.
O refilar dos pais era uma espécie de campainha.
Soava-lhe alto nos tímpanos, tão alto, que por vezes nem a ouvia.
Perdia-se por inteiro em meias folhas de papel, caderninhos de merceeiro de capa dura, mata-borrão para copos de tinto distraídos em tascos de aldeia.
Frequentava-os numa altura em que não havia máquinas de tabaco com controlo remoto a partir do balcão, nem fumar matava.
Gostava de se perder nas histórias de bocas amarelecidas dos mais velhos, posta de bacalhau frito à espera de uma espinha para continuar a palavra arrancada pelo dedo sujo da poda ao palato entretido da conversa.
E como se perdia nesses relatos. A espaços sacava da orelha que tinha em cada conversa um afiado lápis para memória futura. Fazia-o inconscientemente.
A mesma inconsciência que o empurrava vereda acima pela adolescência, disposto a experimentar todas as sensações fortes que coubessem dentro dela.
Pelos dezasseis, dezassete anos, cadernos e cadernos de poemas escritos, palavra a palavra, sem espinhas.
Envolvia-o um amor sem rosto pelas letras. Como se alguém, quase certo um Deus, tivesse semeado dentro de si uma nesga-semente de vida, que nas condições ideais florescia em cada letra riscada, debitando segredos para dentro de folhas quase azuladas, no tempo das vinte e cinco linhas.
O seu nome, João.
Rapaz de um garbo fulvo que pelos cabelos ardia, de uns olhos verdes de água, que quem olhasse para dentro deles descobria peixes, e onde as namoradas ancoravam bocas sedentas de saber mais, um pouco mais além do que sabiam através da mão exploradora dos sentidos.
E como as amava. De cada uma retirava um poema, que depois colava noutro.
De cada uma um tema.
Os olhos de Joana, os dedos finos de Maria, os seios pequenos de Vera.
Vivia em todas: gentil, cavalheiro, dado.
Não sabia dizer que não, que pela boca morria traído pela bondade, essa que habita no conforto de se saber vivo nos outros, biógrafo das vidas, tudo menos alheias.
Por vezes, acontecia-lhe até o estranho facto de acordar a meio da noite, de poema escrito na cabeceira dos sonhos, que passava para o papel de uma vez só, de um só fôlego, num êxtase quase caricato a que só assistiam as riscas do pijama azul que a avó lhe ofereceu nos anos.
“…
Vieste do mar, meu búzio d’areia
E trazias no regaço um mar d’história
Corpo de sargaço, corpo de sereia
Num tempo de fadas sem memória

A praia do teu ventre d’água revelada
Encontrou-se nas areias dos meus pés
Cantando a noite e a doce madrugada
No bailado suave das águas das marés

Tomei-te na alma como quem diz
És tudo o que sempre sonhei
És tudo que eu sempre quis

Tomei-te no corpo, tua alma amei
Foi sempre isto que me fez feliz
Memória do mar que te lembrei”


E esta curiosa ligação com as palavras acompanhou-o pela idade adulta.
O gosto pelas letras levou-o à Faculdade, no primeiro encontro com as cadeiras poeirentas da velha teoria literária, mas também com a fervilhante actividade artística que acompanhava as lides académicas.
Apesar de algumas amizades feitas, o seu melhor amigo continuava a ser um livro.
O livro ainda não escrito, espécie de página branca do que falta dizer, ou folha preenchida de todas as perguntas sem resposta.
Nele se vestia dia após dia com a pele dos dedos, teimando por uma solução.
A que lhe respondesse à questão do poema escrito dentro dele, que lhe fazia dizer o amor antes de o sentir, a saudade antes da partida, a dor antes de a sofrer…
Era uma coisa estranha, essa que o levava a escrever textos antes do tempo, nomeando sentimentos que só vinha a experimentar anos depois de os ter narrado.
O amor estava em quase todos os poemas e um dia encontrou-o.
Foi numa manhã fria de Novembro. Passeava pela praia esquecido, completamente possuído pela bravia força com que as ondas do mar tomam a areia, de olhos largos no horizonte de pássaros e espuma.
Quase tropeçou nele, no momento em que desajeitado ficou segurando aquela ninfa nos braços, desculpando-se do seu intempestivo e descuidado caminhar.
- Mil perdões, conseguiu articular.
- Caminhava distraído…
- Eu reparei, respondeu-lhe olhos nos olhos a jovem.
E como era bela, de cabelos-sargaço e olhos fundos, num corpo que de tão gracioso apetecia tocar, sentir, cheirar.
- Posso desculpar-me, convidando-a para tomar um café?
- Claro que sim, anuiu.
Fizeram-no durante anos seguidos, que nunca mais se afastaram um do outro.
Viviam numa paixão transbordante de carinho e afecto e o escritor dedicava-lhe as melhores páginas que alguma vez escreveu, agora na sensação de que o tempo parara. Nem passado nem futuro, só o tempo presente contava, e não tinha a sensação já de que escrevia por antecipação os sentimentos vindouros da sua vida.
Rosário, assim se chamava aquela deusa, responsável pela alegria de viver de João, pela sua constante inspiração nas letras e na vida.
Certo dia, tomado por uma gripe aborrecida, daqueles que fazem tremer em pleno verão, João recolheu-se na cama aos mimos da sua amada, mais os chás quentes de ervas e mel, duplo conforto para o seu corpo dorido pelo virús.
Precisado de fazer chegar ao correio o original de mais um livro de poemas, que o seu editor aguardava com ansiedade, e impossibilitado de o fazer, logo Rosário de casaco pronto se dispôs a percorrer as poucas centenas de metros que separavam a sua casa da estação, cumprindo com agrado a missão de levar a passear as palavras que tão bem conhecia, uma vez que vivia nelas.
Despediu-se com um beijo que não chegou a tocar os lábios de João.
A porta da rua fechou-se atrás de si ligeira, que apressada era a vontade de regressar a casa e envolver de cuidados o seu amado, feliz pela dádiva desse amor correspondido.
João pressentiu o perigo num arrepio que não foi de gripe, um tudo nada antes da travagem demorada do carro, logo seguida de um abafado estrondo que lhe secou a garganta, incapaz de gritar.
Fizeram-no por ele as vizinhas.
Quando chegou à rua, andavam no ar ainda papeis, um dos quais, deslizando com suavidade, foi poisar no peito ferido da sua deusa que veio do mar, cabelos-sargaço enrodilhados no rosto, papel mata-borrão que absorveu lento o sangue.
Tomou-a desfalecida nos braços beijando o seu rosto e segredando no seu ouvido em forma de concha:
-Está tudo bem meu amor, estou aqui contigo.
A resposta não veio, só um cheiro a maresia por todo o lado e um vento norte levantando poeira na estrada.
As várias fracturas que sofreu no acidente demorariam tempo a curar, mas mais tempo demoraria a sua alma a acordar, pois caiu num coma prolongado, de diagnóstico muito reservado, olhos fechados por quatro paredes brancas de hospital.
João viveu pelos dois todos os dias acordado, dizendo poemas na cabeceira daquela cama, colocando flores junto ao seu rosto de traços finos, intocados pela violência do embate.
Passaram-se semanas, meses.
Num dia em que o sol andava alto, e a janela daquele quarto se abriu para o cumprimentar, o milagre aconteceu. Primeiro uma breve piscada, depois um pulsar quase nervoso da pálpebra, finalmente dois lagos de peixes abrindo em cor. Verdes profundos, verdes próximos, amados.
João gritou de alegria, de uma felicidade plena que ecoou pelo hospital e trouxe consigo na volta, médicos, enfermeiros, o rapaz da perna partida e a Senhora do quarto ao lado, mesmo tendo sido operada às varizes.
Os dias seguintes foram de enorme expectativa, de exames prolongados, análises a tudo e mais alguma coisa.
A ansiedade tomou conta do escritor, mas feita agora de razões diversas daquela que sentia em adolescente, quando tinha pressa de viver e experimentar todas as emoções fortes da existência.
Rosário havia perdido a memória, as lesões no cérebro afectaram-lhe a capacidade de recordar fosse o que fosse, incapaz de reconhecer o seu amado, de partilhar a emoção do reencontro, de se perder nas suas palavras, ditas pela boca da alma, retirando delas sentidos, causas.
Quando regressaram à sua casa, a dois passos da praia, no dia em que o fizeram, as gaivotas esperavam-na planando à volta do simpático moinho recuperado, gritando intervaladas, como se cada uma a quisesse cumprimentar. Rosário sorriu.
Começaria um processo longo de aprendizagem, o de nomear as coisas, de juntar pequenas peças ao grande puzzle da memória.
João estava determinado a ser persistente, e assim que a sua amada passou a soleira da porta, logo reparou em centenas de pequenos papeis escritos em cada coisa: Mesa, cadeira, cama, jarra, panela, copo, flores, poemas…
Era preciso começar do início, mesmo que Rosário não o reconhecesse como a sua metade, mesmo que perdida em pensamentos dispersos, em muito vagas lembranças de algo que não sabia dizer, não podia dizer.
Por vezes durante a noite acordava sobressaltada como se possuída de um medo terrível, que depois de desperta e confortada por João, não conseguia identificar, tombando a tez suada sobre a almofada, acabando por cerrar novamente os olhos.
João não escreveu mais nada nesses tempos que não fossem pequenos papéis, etiquetas para as coisas, que colava em cada peça, na esperança que um dia a luz inundasse a alma da sua amada e pudessem falar novamente a mesma linguagem.
Rosário quase não falava. Quando estava em casa, sentava-se na cadeira de baloiço, observando longamente o mar, embalada pelas águas das marés, ou nas asas das gaivotas que sempre a vinham cumprimentar, fazendo da sua casa o porto de abrigo de todas as horas.
Outras vezes, saía para demorados passeios pelo areal, recolhendo búzios e conchas que depois trazia no regaço e espalhava pelo jardim.
Refugiou-se num silêncio onda cabia a água do mar e as estrelas do céu.
Deixou de comunicar, mesmo com João. Os seus únicos amigos eram as gaivotas e o vento que as embalava.
Uma noite, em que o luar torna todas as coisas visíveis, fazendo das águas um espelho prateado, o poeta que tinha momentaneamente deixado de o ser, simplesmente porque já não escrevia, acordou sozinho na cama. Chamou por Rosário esperando que esta estivesse à distância curta de uma palavra, mas não.
Levantou-se e acercou-se do alpendre. A cadeira de baloiço que tinham comprado juntos na lojinha de móveis usados da vila, balançava ainda suavemente.
Quase instintivamente os seus olhos levantaram-se para o mar. Dentro de água, levantando pequenas ondas no forçar suave dos passos, a sua amada caminhava em direcção ao horizonte, onde uma lua gigante, das maiores que tinha visto, a parecia esperar refastelada.
Gritou:
-Rosário!
A ninfa de olhos verdes demorou um eterno segundo a voltar a cabeça em direcção ao areal, onde a sua camisa de linho estava caída, branca e amarrotada da forma como lhe deslizou do corpo.
Rosário levantou a sua mão de dedos abertos como que despedindo-se.
João correu, da mesma forma como o fez no dia do fatídico acidente, com o coração na boca, sôfrego e ansioso por socorrer a mulher amada.
E apesar de tão depressa o ter feito naquela centena de metros, conseguiu somente vislumbrar os cabelos-sargaço de Rosário a abraçarem as águas, submergida por fim dentro delas.
Entrou ele próprio no mar, nadando apressado em direcção à lua.
Quando pensou estar sobre o sítio onde o corpo desaparecera, mergulhou decidido.
A transparência das águas deixava ver com nitidez o fundo arenoso, aqui e acolá uma pedra, um peixe adormecido, mas nem sinal de Rosário.
Voltou a tentar, encheu largamente os pulmões de ar, que quase lhe doeram do esforço e mergulhou mais à frente.
Passou raso ao fundo, volveu o corpo para a direita e para a esquerda, subiu um pouco e de repente…no limite do fôlego, à sua frente, de cabelos abertos sobre as águas, olhos da mesma cor, sorrindo delicada na sua nudez, a diva dos seus poemas.
Esta abraçou-o e envolveu-o, tranquilizando-o.
Beijou largamente a sua boca dando-lhe o ar de que precisava para retornar à superfície, bateu num sulco rápido os seus pés juntos e desapareceu levantando areia do fundo.
Assim que João volveu à superfície, deixou de mergulhar.
Permaneceu sozinho boiando nas águas cálidas, fitando o horizonte pela estrada da lua.
…………………………………………………………………………………………….
Velho João não mais escreveu. Uma linha que fosse.
Vive no seu moinho onde poisam gaivotas que alimenta com algum peixe miúdo que traz da faina. Tornou-se pescador.
É vê-lo remendando redes na soleira de casa, ou simplesmente fumando o seu cachimbo na velha cadeira de baloiço, fitando o mar tranquilo.
Não faz nenhuma pergunta ao vento, sabe todas as respostas.




A incluir no meu próximo livro a editar brevemente.


Todos os direitos registados

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Apresentação do meu livro em Barcelos - 15/11/07

O meu sorriso nesta imagem, quando deveria ter cerca de 5 anos de idade, é o mesmo que tenho hoje, para vos dizer da minha gratidão, da minha vontade de ser feliz, vivendo em comunhão com todos, a quem me dou pelas palavras e pelos actos.
É uma das imagens do belíssimo trabalho que Sandra Torres fez para mim em Power-point, apresentado nessa noite.
Obrigado, do fundo do meu coração


Dr. Vitor Pinho, bibliotecário municipal e que me fez o convite na última feira do livro de Barcelos. Foi o moderador de serviço.



José Lourenço (JSL), meu amigo de sempre, apresentou o homem e o cibernauta.






O regresso à minha cidade natal ficou marcado por uma profunda emoção, em comunhão com todos quantos se deslocaram ao magnífico auditório da Biblioteca Municipal. Um dia muito especial que guardarei no mais intimo do meu ser.



Os meus convidados de honra, que foram os grandes responsáveis pelo brilho que teve esta apresentação. Estou-lhes grato na amizade que nos une e no amor às letras. À minha Direita na foto, o Dr. Jorge Cruz, em representação da Srª vereadora da Cultura, da Câmara municipal de Barcelos




O meu filhote adorou toda a envolvência da apresentação e esteve junto a mim com carinho, prazer, brincando á minha volta.




Armindo Cerqueira, um dizeur, outro amigo, que emprestou todo o seu enorme talento aos meus textos. Fez brilhantemente a apresentação do livro.




Uma vista dos muitos amigos e conhecidos que me acompanharam




O Gonçalo e a Bea (olhitos de azeitona), adoraram estar com o pai




Vasco Santos e os "Canibais do Poema"





A minha filha beatriz disse um poema da sua autoria e um texto do pai





O meu amigo Carlos Moreira tocou e encantou com temas populares e um da sua autoria












segunda-feira, 19 de novembro de 2007

"A última cartada"


“…Uma sebe três anos…Um cão três sebes…Um burro três cães…Um homem três burros…”

Assim falou João de Barbudo, homem do tempo em que a tuberculose matava tanto como a fome, numa mesma míngua de cuidados; uma porque a cura por vezes matava, outra porque também…


Desde cedo, Mestre João, carpinteiro de todas as coisas mais aquelas que não tinham arranjo, se habituou a recolher às arvores o fruto, ao mosto o vinho, à caridade a broa.


Mais novo de sete irmãos que já partiram e o Senhor os tenha. Mais velho de todos.


Oitenta e um anos de vida, alguns de França, lá pelos anos em que se passava a salto, que havia homens da raia que o faziam a troco de ficarem.


Ficarem num país de meia sardinha, batata, pão de milho e tabaco estrangeiro, para fumar em dias de irmãos que chegam, mesmo assim menos raros que os dias de fome e falta, que eram todos os outros.


Tempos houve, em que os galos de capoeiro, enfraquecidos, não cumpriram os desígnios ovulares para que eram talhados, e os retalhos da franga deram carne que se visse, um pouco mais além da canja. Ovos sequer para as horas sem dormir dos dias de estômago acordado.


O cognome Barbudo acompanhava-o, mesmo tendo a face limpa. De Barbudo, porque assim se chama a terra que o viu nascer, a dois passos de Braga, mais concretamente quinze kilómetros, feitos a pé, em fato curto e apertado, com cheiro a comunhão solene feita há mais anos que o prazo de duração que tinha o Bilhete de Identidade caducado.


A ida à grande cidade era um acontecimento maior que o velho castanheiro que matava a fome pelo Outono, que a castanha servia para todos, mesmo para o porco enfezado, que nesses Outubros ganhava cor e um certo garbo.


- Eram outros tempos, esses tempos de miséria…Disse isto enquanto fazia dama no tabuleiro de companhia diária, perante o desagrado do jovem jogador de cabeça cansada de ser coçada.


- Chico traz aí uma taça que paga o moço.


- Olhe que a partida ainda não está perdida, refilou um pouco ansioso o condenado.


- Condenado a não pagar, que Mestre João sempre fazia questão de não aceitar, no preciso momento em que uma certa vergonha e desilusão puxava da carteira para cumprir a pena…


Era uma espécie de lição gratuita de civilidade, de fair-play, palavra que não lhe dizia coisa nenhuma.Gostava mesmo era de jogar.


Podia ser às damas, ao dominó, ou às cartas. Acompanhava-o desde novo uma especial apetência para os jogos, mais uma estrelinha de sorte, que lhe trazia as cartas precisas na altura certa, ou a distracção de uma má jogada do opositor no momento ideal.Toda a gente lhe reconhecia a sagacidade e lhe elogiava o bem jogar. O seu nome era admirado de pai para filho, vivia nas histórias de jogo e até nas de pesca, onde aí também a sua mestria dava cartas.


Não havia rio ou riacho na região que não lhe conhecesse os passos silenciosos, que em vez alguma os galhos tombados das beiradas tiveram algo a dizer, nem truta que fosse lhe fugiu por causa de um descuido de bota a estalar o caminho sorrateiro dos amiais.


Todos se perguntavam do porquê de descobrir com facilidade os locais onde o peixe tranquilo se escondia, de adivinhar os seus movimentos, as suas insondáveis vontades e caprichos.


Parecia que lhes tomava vantagem, esperando-os na curva da surpresa, onde a fome avista a minhoca e a abocanha decidida.


Aos oitenta e um, João de Barbudo não é homem de hábitos rígidos. Para além das duas idas diárias ao café da aldeia, mais ninguém lhe consegue seguir os passos e, há dias até, em que o fiel “pintas” lhe não põe olhos e língua em cima, e não tem outra alternativa que não seja ladrar á anafada vizinha da casa em frente, esperando uma caridade em forma de osso.


A sua independência e autonomia rivaliza com a de todos os outros idosos, para quem o simples percorrer de caminho de casa à igreja se assemelha a um calvário, várias vezes feito, como se procurassem expiar os pecados de uma existência curvada ao peso de anos, amparando-se na bengala da rotina.


Naquele sábado á noite, dia de futebol na televisão, levou-o ao café do Chico uma vontade de beber um brandy morno e um café, que o cigarrilha, essa trazia-a de casa para uns momentos de gozo de fumo, gesto que não repete muitas vezes, mas que faz com verdadeiro prazer, expirando largamente o fumo que não chega a engolir.


Ao fundo joga-se sueca.


Velho João, que não é velho, gosta de se sentar a ver o jogo sem dizer palavra, ao contrário de muitos a quem só lhes falta jogar a carta pelos intervenientes. Uma coisa irritante…


O Espanhol refila sempre, mas é um belíssimo jogador, dos mais respeitados, mais não seja pelo vozeirão habituado a competir com as barulhentas rebarbadeiras que usa na sua actividade.


O Manel Fininho, rapaz mais novo, é seu parceiro nesse dia e já esgotou todas as teorias para se justificar perante o Espanhol da opção de jogar a bisca. Sem sucesso.


Com as duas “caralhadas” sonantes que lhe são dirigidas, Manel fica a desconfiar até da própria existência.


A selecção está a ganhar por três a zero o que retira interesse ao jogo, mas não ao de cartas. Chegou ao café um par já conhecido, homens da Barca, gente costumeira nos jogos a dinheiro.


Distinguem-se pelas samarras de gola de pele e pelo enchumaço da carteira no bolso de trás. Deixaram o Opel Kadete GT Turbo a refilar na rua com um cão menos interessado em marcas.


O Chico, o dono do estabelecimento gosta dessas emoções. Gosta de apostar o que tem e, às vezes o que não tem. Gosta da sensação de poder desafiar o destino que lhe querem reservar, de vinho a copo e diárias ao meio-dia.


Uma ou outra vez havia provado o sabor azedo de fel da perda, centenas de contos de uma só vez, dizem.


Naquele dia o comerciante tivera uma espécie de premonição de sorte, coisa vulgar entre os jogadores de cartas, uma espécie de sintoma de vício, que o jogador identifica mas é incapaz de combater.


Assim, quando os forasteiros lançaram de um trago a ideia de um joguito a dinheiro, logo Chico, de coração na boca largou um entusiasmado:


- Vamos a isso!


O avental soltou amarras da cinta e espalhou-se amarrotado num dos cantos da arca frigorífica, com ele o cheiro a carne e molho da refeição do dia.


Passou os dedos engordurados no cabelo e quase sentiu uma réstia de cheiro do After-shave Dénim que a mulher lhe compra na mercearia do Neca.


Estava pronto.


De uma prontidão quase sufocante, o grupo das cartas foi conduzido para lugar mais recatado, nas traseiras do café, fechando-se portas para quem vinha de fora, que por aquela hora também seriam poucos.


João de Barbudo ficou na sala, estava a saber-lhe bem o Brandy e ainda voltaria a acender o puro. Nunca quisera saber de jogos a dinheiro e também não seria hoje o dia.


Dos fundos começava a chegar o eco das primeiras emoções. Barulho de dedos a bater na madeira, vozes a acompanha-los, seguidas de decididas análises à jogada, como que explicando o óbvio a quem via.


Chico estava a ganhar. Corria-lhe bem o jogo e ele até já sabia que iria ser assim. Tinha-lhe soprado ao ouvido um anjo vestido de valete na noite anterior.


Estava entusiasmado e mandou o moço buscar uma rodada para toda a gente.Acontece que tão depressa como começou a ganhar, com a mesma volúpia, começou a correr atrás do prejuízo, apostando cada vez mais dinheiro, subindo paradas em cujas franjas já não tocavam fanfarras, que a desilusão geral da assistência já não fazia bater as baquetas da sorte.


A coisa estava negra, tão negra como a noite que se adivinhava lá fora. Os vidros embaciados, mistura de ressoado ar e sujidade, que escorria agora para dentro do desconsolado jogador. Em pouco tempo voaram do seu bolso os dias todos de apuro da semana e já assinava cheques, coisa que só fazia para pagar a alguns fornecedores, num febril e alucinante ritmo.


Estava perdido. De um desespero enganado de que ainda dava a volta ao resultado, o mesmo desespero que por certo acompanhava os Arménios, a jogar com Portugal e a perder por quatro ao fim de 89 minutos.


João, carpinteiro da vida, tinha aprendido a escutar os silêncios, mais os ruídos surdos do desânimo. Apercebeu-se de que algo se passava. De muito mau.


Chico suava mais que um porco enfezado antes de Outubro. Estava à beira de naquele poker de emoções, perder anos de trabalho, de vida dura como a madeira dos pipos, de se desgraçar…A determinada altura, a perder mais que o que algum dia lhe fosse possível ganhar, arriscou tudo…


- Jogo tudo o que perdi, por troca com o meu café. Com uma condição:


- joga por mim as últimas partidas, defendendo a minha honra, Mestre João de Barbudo…


Os elementos da mesa, mais os dois “estrangeiros” em ar de conluio, riram-se da pretensão…


- Já disse! Resmungou, agarrando-se à fama de Mestre João, que ainda nada sabia do assunto.


Procurou-o pelo cheiro do charuto que da sala se encostava às paredes, chegando sem avisar à mesa de jogo. Só agora o havia sentido. Só agora.


- João, você foi amigo de meu pai…começou por dizer.


- Foi, dizem por aí até, namorado de minha mãe antes de meu pai chegar aqui para se estabelecer…


- Preciso que me ajude, por favor.


O de Barbudo, continuou mudo.


- Rogo-lhe por tudo que jogue por mim e tente recuperar o meu dinheiro, a minha casa, a minha vida. Por favor, repetiu.


Mestre João levantou-se, apagando um nada de tabaco negro sobre o barro pintado do cinzeiro.


- Com uma condição, disse o velho, que não era velho.


- Qualquer uma, respondeu-lhe o aflito jogador, ganhando um pouco de cor.


- Jogarei por ti na condição de que será a última vez que o faço. Nunca mais tocarei num baralho de cartas, nunca mais jogarei jogo algum que seja, apagarei da memória todos os dias passados, todas as lições que dei, todos os que nunca souberam perceber o jogo e o seu prazer.


- Tu farás o mesmo, sem nunca o teres chegado a compreender…


O aflito disse que sim com a cabeça, mas não chegava. Era preciso a palavra.


Essa que o vento leva enrolada noutras, que formam bola, todas juntas, novelos de cada um, meada que ninguém segura do outro lado do fio.


- Prometo-lhe Mestre. Juro-lhe pela minha mãe.


- Jura-me por ti, por quem és. Não jures por quem não está, já partiu.


- Jura-me pelos dias todos em que te vi crescer!


- Jura-me porque estive por perto!


- Jura-me porque te guardei no peito sempre!…


- Juro.João de Barbudo que não o era, acercou-se da mesa de jogo, cumprimentou olhando cada um nos olhos.Foi recebido com respeito.


Desviaram-se cadeiras nos olhos cansados de alguns, arrumaram-se copos num soslaio.


O jogo final estava lançado. Distribuídas as fichas, alinhadas as cartas, e um bater nervoso de pé de alguém que a toalha escondia…


- Full house, e João recolhe as fichas.


- Poker de valetes!


- Full de ases e recolhe o dinheiro perdido e alguns cheques…


Passadas poucas jogadas, que a parada era alta, João jogador que deixaria de ser, velho que não era, olhou o adversário final que lhe restava. Nos olhos, mais uma vez.Viu-lhe a alma, e o outro sentiu um arrepio, que iludiu num trago que lhe esmurrou o estômago.


- Vamos a isso, disse o da Barca engolindo a azia que lhe retornou ao sítio de onde veio e novamente á boca numa baforada sem aviso.


- Tudo ou nada, quase soluçou…


Chico acenou apressado com a cabeça.Mestre João disse-lhe:


- Lembras-te do que prometeste?


- Sim, respondeu rubro e cabisbaixo.


- Ergue a cabeça então e vê a tua vida em cada carta que eu levantar. E seja qual for o resultado disso, aprende.


O Coupier lançou em quase slow-motion as cartas para a mesa. As vozes pareciam demorar uma eternidade a sair das gargantas, sinalizando as opções.


Era decisiva a carta que levantaria.Ou completava a sequencia Royal que tinha de copas ou o bluf do outro, do da Barca, terminaria ganhando com dois pares, que não tinha mais que isso…


Faltava-lhe a dama. A de corações partidos, a que um dia o deixou para outro sem aviso. A que partiu para a terra funda, sem nunca ter dito uma palavra que fosse de conforto, nem que isso fosse uma espécie de murro no estômago…


Recolheu a carta.Levantou-a para os olhos verem. Brilharam rubros ao fundo, na primeira imagem que os outros viram através deles.


Era uma copa sim a carta.


Mas não era a dama…


Francisco Milheiro, o Chico, caiu redondo no chão que já não era seu. Já nem isso tinha.


Mestre João de Barbudo recolheu o baralho da mesa guardando-o no bolso, mais o casaco da cadeira. Colocou o seu chapéu de aba, abriu a porta com cuidado e saiu.


Nos meses que se seguiram, a vizinhança deixou de ouvir ladrar o cão.


O “pintas” tem comido por casa. A sua actividade e aspecto cuidado é quase a única garantia que têm de que João de Barbudo, jogador extraordinário de todos os jogos, está bem.


Deixou de sair, é avistado de fugida algumas vezes a enrolar estranhos cordéis, fazendo novelos que depois deixa largados no jardim.


Ninguém sabe bem o que lhe irá na alma. Contam-se já as histórias que se transmitirão nos tempos futuros, de geração em geração.……………………………………………………………………………………………..............


Um dia o “pintas” voltou a ladrar à porta da anafada Gorete costureira.


Mas não foi por um osso.Ladrou para avisar que o dono partira. De vez. Numa viagem sem regresso.


Estava deitado tranquilo na cama quando foi encontrado. Vestia o fato que habitualmente levava para a pesca, as botas de borracha, e ao lado a cana truteira alinhada com o cacifo.


O funeral foi simples. Como não tenha família viva, o cortejo fúnebre conseguiu levar algumas gentes da terra, mais uns velhos, que eram mesmo velhos, seguros por bengalas de tédio.


Segurando o caixão, numa das abas, Francisco Milheiro, bilhete de identidade caducado por falta de uns trocos, o Chico.


O que também era de Barbudo.


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Recolhido por caridade em casa de um amigo da freguesia, Chico nessa noite fechou-se no quarto, barriga de fome dilatada, para uma noite mal dormida, agachado como um ovo nos seus pensamentos.


Bateram à porta.


O Fredo disse de fora:


- Ó Chico, está aqui um oficial de justiça para falar contigo…


Abriu a porta desdobrando-se sobre si mesmo, como que arcando com a consequência lógica de um final sem história…


Mas a história era outra.


- Sr, Francisco Milheiro?


- Sim, sou eu.


- Venho notificar o Sr. de que na próxima sexta-feira, pelas 14,00, na Secretaria do Registo Notarial, será lido o testamento de João Afonso Morgado, tendo o Sr. sido arrolado como herdeiro.


Não queria acreditar em tal coisa. Herdeiro?


Ele que havia perdido tudo, e até, pensava, a consideração de Mestre João.


No dia indicado deslocou-se ao local de leitura previsto. Quando pensou que estariam lá outras pessoas, estranhamente ele era o único. Ele e o Notário. Olhos nos olhos cabisbaixos de Francisco.


- Passo a anunciar os bens em testamento de João Afonso Morgado:


- Uma casa sita no lugar de Pena


- Um valor em dinheiro de 193.234 euros.


- Uma carta e um baralho de cartas para ser entregue a Francisco João Milheiro de Sousa.


E dizendo isto entregou o envelope e o baralho ao Chico, referindo que essa era, antes de mais, a vontade do falecido.


Dizia assim:




Caro Francisco,


Espero que ao receberes esta carta te encontres bem contigo próprio.


Fui-me embora, desculpa.


Deixei de ouvir o barulho da água, que sempre ouvi, mesmo sem ir à pesca.


Deixei mesmo de saber falar com os peixes.


Podes não entender o que te digo, mas acredita que se parares para ouvir o teu coração, se desejares muito isso, sentirás todos os rios dentro de ti, todas as cachoeiras da alma a fluir no teu peito.


Tenta…


Há palavras que nunca te direi. Desculpa-me por isso.


Vive cada dia da tua vida como se fosse o primeiro dia. E como me lembro ainda disso…


Deixo-te todos os meus bens. Guardei ao longo dos anos tudo aquilo que não me fez falta, não é muito, é um começo de nova vida para ti.


Espero que a promessa que me fizeste de que nunca mais jogarias se mantenha até ao final dos teus dias.


Por ti.


Nota: Naquele dia, naquele último jogo, a carta a sair deveria ser a dama de copas, como te recordarás. Se a procurares no baralho que recolhi nessa noite da mesa, não a encontrarás.Faz disso a primeira lição da tua nova vida.


FIM




Conto a incluir no meu próximo livro. Todos os direitos registados