sábado, 27 de dezembro de 2008

Numa colmeia de palavras as abelhas são as prostitutas mais belas

Para Marco G.

Há palavras pétalas por todo o lado tombando no chão do poema. Um cheiro doce.
Vindas do nada as abelhas.
Num instante incendeia-se o ar de uma serenidade de asas, de uma combustão criativa.
As letras uma por uma sugadas, palavra a palavra devoradas.
A boca do poema derramará sem pretexto a seu tempo o mel, que é o texto num orgasmo lento.
O poeta é um apicultor dos orgasmos das palavras. Neles se expande mesmo quando se masturba, pois é em si mesmo poema.
Sua alma hermafrodita é prostituta, mas fiel como cada abelha sintonizada à sua colmeia.
Quem junta palavras procura opostos. Rima cada coisa com a sua contradição afinal.
Numa colmeia de palavras as abelhas são as prostitutas mais belas, pois cada uma é a parte mais libertina de um todo lexical.

O sol nascente encurralou a neblina no vale

O sol nascente encurralou a neblina no vale.
Lá, onde as igrejas se adivinham pelo dobrar dos sinos, e a torre mais alta estica o pescoço fino para impor a manhã clara das coisas.
Aqui, bem próximo de mim, o peru canta vitória sobre a madrugada que lhe prolongou a vida e as galinhas debicam com alegria os restos da ceia em ameno cacarejo.
Também o cão já deu bom dia ao dono e ladra a espaços para comunicar com todos na quinta, avisando longe, que foi ali naquele lugar colado aos montes que nasceu o sol, imperial, mesmo desconhecendo que este a todos pertence.
Ontem, quando a noite trouxe as sombras aos caminhos, havia mais luz em todas as casas, mais brilho em todas as fachadas.
À volta de uma mesa partilharam-se gostos, paladares e sorrisos com as crianças. Cada uma trazia já nos olhos o sol que nasceu hoje sobre o vale.
Nesta manhã de prendas e meninos felizes da minha aldeia, há homens vestidos de esperança, um adro de igreja. Um copo com que se brinda o nascimento.
Com fraternidade, com alegria, sem tempo.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Há um texto escondido que ainda não foi escrito


Desenho no paint do meu filho de 4 anos

Há um texto escondido que ainda não foi escrito
Há um destino que não cabe no texto
Há um estigma e há uma cruz
Mero pretexto, a precisar de ser dito

Há uma revolta e um frenesim de luz
Na luz que emana de uma simples candeia
Um presépio de pus a escorrer
Nesta liberdade à boca cheia

Teu ventre é o meu búzio fonema
Trapézio sem mãos onde anseio morrer
Minha eterna procura, solução e poema
Palavras à espera de quem as saiba escrever

O meu texto tem pernas de mulher
Descruzadas,
Insinuantes e ofertadas
Tem olhos no que a boca disser

Por ele arrisco cair
Chegar e partir
E arriscar para começar
haja o que houver

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Apresentação do livro de Maria Sousa - "Azul que não se sabe se é de céu ou de mar"



Foi com muito orgulho que apresentei a poetisa Maria Sousa no passado sábado no Real Feytoria, na ribeira do Porto.
Convido-os a conhecerem os seus poemas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O meu primeiro livro como Ebook em todo o mundo



A partir de hoje o meu primeiro livro está à venda, 24H por dia, para todo o mundo. Podes visitar o mesmo neste link:

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Poderás adquirir o meu livro por apenas 2,99€, como Ebook (livro electrónico).

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Tudo o que comprares pode ser pago de 2 formas:

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O livro estará disponível , para o descarregares, após o pagamento ser detectado pela contabilidade da editora.
Este processo pode demorar entre 2 a 7 dias após o pagamento.
A transferência bancária pode ser efectuada em qualquer caixa Multibanco ou através de "Home banking" se tiveres acesso à tua conta através da Internet.

Visita a comunidade gratuita Worldartfriends.
Podes ver textos meus e de outros escritores.
Poderás colocar os teus próprios poemas, músicas, vídeos e fotografias. Participar em concursos.
Ter acesso a Chat, Rádio e email. Faz amigos . Tudo isto Gratuitamente em :

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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

De como se deve comer uma boa rojoada em dia de Restauração



porquinhos.com.sapo.pt/
Tome-se do porco a carne mais as entranhas. Coloque-se a carne a marinar generosamente em vinho novo e louro fresco do morro. À trança de alhos retirem-se as cabeças mais iluminadas.
Os cominhos lançados como quem semeia o amanhã.
A gosto o sal.
Separem-se as partes viscerais do animal. O sangue bem cozido, assim como a tripa, mais o bucho. O fígado lascado transversal.
A Banha convém que seja de qualidade reconhecida, feita daquilo que o animal acumulou de liberdade, de profunda incerteza no fossar.
Nessa busca cozinhe-se primeiro a carne.
Em lume alto de independência. Até que o vinho a tome como a terra toma os homens. Até que o cheiro se espalhe por toda a casa e por todo o lugar.
Reserve-se os rojões em caçarola de barro pintada.
Na banha líquida e depurada, deite-se a tripa em cama de garbo, mais todas as outras partes do estômago do animal.
Cozinhe-se num ritual sem tempo. Na genealogia das famílias, afiadas como facas. De pai para filho.
E por fim o sangue.
Abundantemente misturado no alho fino, etapa final de uma vida e um destino.
Semeiem-se os cominhos.
E que se impregne da banha de porco que o cozinhou, cumprindo-se o destino do animal.
PORTUGAL.

Nota 1: Para apreciar este prato é necessário entender o porco por dentro .
O vinho a rodos e alguns amigos, poucos.

Antologia Luso-poemas 2007


Sob a chancela da Edium Editores será lançado no próximo dia 13 de Dezembro, na cidade de Lisboa, o livro “Antologia Luso-Poemas 2008”, uma compilação de diversos textos de vários autores que publicaram neste site, durante o ano anterior. Uma referência na escrita feita na internet e fora dela.
Numerosos autores editaram os seus livros através do site. Uma família alargada de gente que se encontra, confraterniza, e à qual eu tenho a honra de pertencer.
Publico no site desde 2007 e fui escolhido para figurar nesta antologia com textos em prosa.

Lista de autores da Antologia Luso-poemas 2008
www.luso-poemas.net



Alemtagus
Betha M Costa
Carla Costeira
Carlos Carpinteiro
Carlos Said
Carolina
Cleo
Conceição B
Daniela Pereira
Expanta
Flávio Silver
Fly
freudnãomorreu
Gilberto
Godi
Goretidias
Henrique Pedro
João Filipe Ferreira
João Videira Santos
José Torres
Júlio Saraiva
Karla Bardanza
Le Tab
Ledalge
Luís Ferreira
Margarete
Maria Sousa
Mel de Carvalho
Noite
Paulo Afonso Ramos
Pedra filosofal
Rosa Maria Anselmo
Sandra Fonseca
Tália
TrabisdeMenta
Tytta
Valdevinoxis
Vera Carvalho
Vera Silva

domingo, 30 de novembro de 2008

Flávio Lopes - Apresentação do novo livro




No próximo dia 5 de Dezembro, pelas 21,30, o meu irmão de letras e amigo Flávio, apresenta no Auditório da Biblioteca Municipal de Barcelos o seu mais recente livro.
"Sou um louco que sabe tocar acordeão", pela Edium Editores.
José Lourenço e Armindo Cerqueira apresentarão livro e autor.
Serão ditos poemas da obra por Fátima Marques e Fernando Soares.
Meu amigo, estarei na primeira fila dos que te apreciam e te conhecem bem. Desejo-te o sucesso e o reconhecimento alargado que te tarda.
Um abraço

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Anadia - Vanda Paz






Apresentação do livro de Vanda Paz - Anadia - Museu do vinho.
Um encontro de amigos da escrita e a celebração da poesia de uma amiga que faz parte de nós.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Primeiro livro de Vanda Paz




António Paiva escreveu o prefácio e vai apresentar a obra. A mãe da autora, Helena Paz, pintou a capa do livro.

Pré - Lançamento
Dia 21 de Novembro
Escola Superior Agrária de Santarém em Santarém
Às 21 horas no Auditório da Escola


Lançamento
Dia 23 de Novembro
Museu do Vinho da Bairrada em Anadia
Às 15 horas no Auditório do Museu

Querida amiga Vanda, és uma enóloga de créditos reconhecidos, e quem com tanto amor faz da uva néctar, também faz das palavras poesia. Eu sempre soube isso. E tu?
Desejo-te o maior sucesso para este livro e põe se fazes favor mais um prato na mesa.

O livro do meu amigo Fernando Saiote


"Será apresentado no próximo dia 29 de Novembro, pelas 21.00 horas, a obra poética de Fernando Saiote intitulada “Pedras Soltas”. O evento decorrerá em Montemor-o-Novo, no espaço “Música ao largo” (Largo da Matriz, 19), a partir das 21 horas. Obra e autor serão apresentados pelos Prof. João Luís Nabo e Prof. Vítor Guita."
Meu amigo, tu que és da linhagem dos Saiotes, recebe o meu abraço de felicitações e que tenhas muito sucesso com este livro que bem o mereces pela forma como tratas as palavras.
Contigo, de amigo para amigo.

Eu já aderi, e tu porque esperas?



Vale a pena pensar Portugal assim. Vai por mim.
Fonte: Mil Notícias - Outono 2008

No princípio era o sol


A minha grande amiga e poetisa Mel de Carvalho acaba de editar "No princípio era o sol", livro de poemas com a chancela da Edium Editores.
É pois com grande alegria que o recomendo vivamente a todos os leitores.
"Ao adquiri-lo está a contribuir com 10% do valor de capa para a AIPNE - ASSOCIAÇÃO PARA A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS".
Parabéns minha amiga pela tua atenção aos mais necessitados do nosso apoio.
Poderá ser adquirido através de um link que se encontra no seu blog: http://noitedemel.blogs.sapo.pt/

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Um texto fora


Foto de João Luz - (wophy.com), recuperada de um outro post. - Fantástica

Hoje é o tempo. Tenho disso a certeza em cada coisa.
Houve, no entanto um tempo, em que as coisas me pareciam diferentes. Eu parecia estar fora do tempo e fora das coisas.
Desconfio que hoje se acertaram os ponteiros do meu tempo por razão evidente, e disso tenho quase a certeza.
Foi como se tivesse acordado ontem do sonho de um novo amanhã. O dia de hoje é o presente do meu sonho.
Hoje é o tempo.
De mudar o futuro a cada dia, de transformar cada coisa. Em todos os segundos.
Hoje é dia de dizer alto o amor, de semear sem planos a amizade. É dia de colher o fruto que não escolhe estação, é dia sem condição.
Hoje é o dia de deixar de contar os minutos e ver passar as horas. É o dia sem dia onde o dia mora.
É hoje.
Nem que chova, nem que faça sol. Todos os dias são dias bons para escrever.
Amanhã não existe por agora.

Apresentação do livro de poesia de Maria Sousa


No próximo dia 6 de dezembro, apresentarei a convite da minha amiga Maria Sousa o seu livro de poesia "Azul que não se sabe se é de céu ou de mar".
É com muito prazer e honrado pela sua escolha que aqui vos deixo o cartaz do evento.

domingo, 2 de novembro de 2008

Por uma linha

Se me apetecesse escrever uma linha que fosse…
Se ao menos me apetecesse uma linha
Que fosse de caminho
Que se lesse de carreirinha
E de ferro fosse…

Se ao menos me apetecesse a página como ninho
E desse modo a construção do verbo
Nem que fossem as palavras eterno voo
E cobriria o teu corpo com adjectivos de fino linho
Sem custo, sem dor, nem enjoo…

Mas sopra em mim destino de maior acervo
Forçado que estou à escravidão pela liberdade
Um vento que de tão norte
Leva consigo a própria verdade
E por aí escapa de soslaio
À morte.

josé ilídio torres
(todos os direitos reservados)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Hora do Conto em Távora (Arcos de Valdevez)





No passado dia 15 de Outubro convivi com os meus alunos de 5º e 6º ano, apresentando-lhes o meu livro "Contos de Água e Areia".
O convite foi uma gentileza da equipa da Biblioteca Escolar, tendo participado na iníciativa cerca de 70 alunos.
Todos escutaram atentamente o conto "Beatriz e o espelho mágico", gravado por Luís Gaspar e que está disponível neste blog.
No final, a conversa foi animada e a todas as questões respondi com um sorriso de enorme satisfação.
Escrevo também para vocês. Obrigado a todos.

Balada de um amor só

Olha-me nos olhos
Olha-me só
Olha-me
Só nos olhos

Que vês no que vês
Vês só os olhos
Os vês
Só o que vês?

Olha-me agora
Neste instante que te olha
Que vês?
Só os meus olhos sós
Ou só o que vês?

Olho-te nos olhos
Sei o que vejo
Não me vejo só
Só porque me vês.


R - todos os direitos reservados

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

À vossa


Decidi dar um novo rumo a este blog...
Saúde.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Rio do Esquecimento


.
Tapeçaria de Almada Negreiros existente no Hotel de Santa Luzia em Viana do Castelo
" Comandadas por Décios Junos Brutos, as hostes romanas atingiram a margem esquerda do Lima no ano 135 aC. A beleza do lugar as fez julgarem-se perante o lendário rio Lethes, que apagava todas as lembranças da memória de quem o atravessasse, os soldados negaram-se a atravessá-lo. Então, empunhando o estandarte das águias de Roma o comandante chamou da outra margem a cada soldado pelo seu nome. Assim lhes provou não ser esse o rio do esquecimento."
________________________________________
«Com relação ao rio Lima, história e lenda encontram-se tão interligadas que nem sempre é fácil delimitar onde acaba uma e começa outra.
Foi sempre a beleza do rio a provocar encómios e o sentimento de incapacidade duma expressão condigna a atrair o poder sugestivo da lenda.
Vem dos velhos tempos o processo. Estrabão designou-o por Beliom e relata ter ocorrido nas suas margens um episódio militar entre Túrdulos e Célticos.
Iam já a atravessá-lo quando surgiu entre os dois povos uma discórdia.
Lutaram e foi o sangue do próprio comandante que se juntou ao de muitos outros a macular a brancura das águas.
Desorientados ficaram os soldados e, sem comando, se dispersaram pelas margens, em luta pela sobrevivência.
Lucano chamou-lhe o "Deus do Tacitus", em virtude da mansidão com que corriam as suas águas.
Tito Lívio denominou-o "Rio do Esquecimento" ("Oblivionis fluvis ou flumen").
Surgiu, então, a sua identificação como Lethes da mitologia, que tinha o condão de provocar em todos os que o transpusessem o olvido do passado e da própria pátria.
Campos Elísios passaram, em consequência, a apelidar-se os que circundavam, isto é, as suas margens.
Mais semelhantes a jardins, no conceito mitológico; onde, segundo o testemunho de Políbio, só durante três meses do ano as rosas não floriam.
E ainda Estrabão que nos diz ser esta a terra perfeita por qualquer fugitivo de Roma.
Dentro deste condicionalismo, aqui chegaram um dia, sob o comando de Décios Junos Brutos, as legiões romanas, com as altivas águias a tremularem nos pendões.
Vitoriosas haviam pisado as terras que estavam para sul e propunham-se prosseguir.
Desciam, a justante, dos lados de Ponte de Lima e teriam iniciado a jornada desse dia em Vitorino das Donas:
"Daqui saiu Bruto pelos campos tão celebrados com o nome de Elysios a procurar lugar em que com o seu exército pudesse vadear as cristalinas águas do Lethes tão respeitadas com a fabula virtude de encantadoras." (João de Barros, Antiguidades de Entre Douro e Minho).
Encontravam-se no lugar da Passagem e fácil pareceu ao comandante a travessia.
Nesse sentido emitiu ordens, mas encarniçada se revelou a resistência dos soldados, conhecedores como eram dos poderes sortílegos atribuídos às suas águas.
Não perdeu ele a serenidade nem achou conveniente procurar convencê-los por meio de palavras.
Tomou a bandeira, ergueu-a ao alto, transpôs o vau e, já da outra margem, a muitos chamou pelo nome e incitou a seguirem-lhe o exemplo.
Por esse meio os convenceu de que, afinal, não era verdade o que a lenda propalava.
Assim exaltado nos advém, das mais longínquas eras, o fascínio deste rio que até aos nossos dias tem sido cantado por todos quantos puderam contemplá-lo.»
Conde de Bertiandos, in Lendas, 1898.

Conto: O Rio do Esquecimento Por: José Ilídio Torres

Festejava-se no acampamento romano a vitória desse dia do homem sobre a lenda, do poder de chefia de Júnio sobre as forças da natureza.
Os soldados comiam e bebiam junto às fogueiras acesas na noite, que todavia não precisava delas para iluminar as formas. A lua era gigante nos céus, e parecia juntar-se à celebração, rendida à valentia e coragem daquele comandante.
A sombra das lanças cruzadas e das águias nos pendões, difundia-se pelos chãos, na confiança longa da caminhada que os trouxera de sul.
Perto da margem, os cavalos bebiam da tranquilidade do Lethes, que inundava de roseiras os terrenos. Pequenas e bravias, mas rubras de um sangue adivinhado. Apesar de tudo, longe daquele que foi derramado ao tempo de Viriato, e que por aqueles anos era já só uma memória vaga de resistência e valentia na voz dos velhos anciãos dos povos daqueles lugares.
Outrora unidos na defesa de um território, corria sangue Celta e Ibério, nas veias dos que eram também lusitanos.
O astuto Viriato conseguiu durante anos unir culturas diversas em torno de um ideal de defesa, infligindo amarguradas humilhações aos romanos invasores, dispostos a alargar o seu império do ocidente, conquistando esta terra de enorme valor estratégico no controlo das rotas.
Matou-o a traição daqueles que controlava com pulso de ferro, que não resistiram ao brilho e esplendor das armas, ao garbo do invasor, ansiosos que estavam por uma riqueza fácil e uma união prometida.
Mas isso já era passado. A noite daquele dia pertencia ao descendente dos Brutus romanos, cujo nome haveria de ficar intimamente ligado à história da Gloriosa Roma, que estenderia os seus tentáculos de poder por mais quatro séculos no ocidente.
Por isso, bebiam os homens com tempo, a cerveja ( uma bebida de fermentação que já se fazia nessa altura) saqueada nas aldeias, e rodeavam-se das virgens que deixavam de o ser em noites de euforia como estas e que acompanhavam os exércitos no seu caminhar, roubadas aos pais, mais todos os alimentos e animais necessários às tropas.
As mais belas moças estavam destinadas ao comandante e seus chefes militares.
Naquele dia Brutus achou que merecia a mais bela. Mandou chamar para o seu leito uma jovem de cabelos cor de trigo, agarrados ao longo de um entrançado de flores, filha de um druida que encontraram num pedaço de floresta, e que vivia sozinho com ela.
A rapariga apareceu à sua beira trespassada pela luz do exterior. Numa túnica branca que lhe foi dada a vestir, sem mais nada por debaixo, depois das mulheres a terem perfumado em banho de rosas colhidas às margens.
O heróico comandante tremeu com a sua beleza, ele um homem bravo e destemido. O seu corpo tinha as formas do rio, de braços longos e mãos finas, como se uma deusa se tratasse. Os olhos de água, cheios de um brilho que ofuscava, como se fazendo parte daquele que a lua exalava.
Chamou-lhe Roma.
Possui-a como um bárbaro. Ofegante. Várias vezes. Sem que em nenhuma delas a moça mexesse os olhos abertos, ou cerrasse os lábios desenhados por um estranho sorriso..
O sangue da sua desfloração, colara-se à barriga e ao sexo do invasor daquele corpo sereno como as águas do Lethes.
Brutos adormeceu extasiado da bebida e daquela prenda dos deuses com que se lambuzara, sonhando com a sua Roma de circos, de comércio, esplendor e prosperidade, sentindo-se dela um filho dedicado.
Nessa noite fora também amante dela no corpo belo de uma outra, e não viu nem reparou quando esta deixou a tenda caminhando, libertando os cabelos antes cerrados por flores, em passos que abriam olhos de luz na terra como se rosas germinando se tratassem.
Passou por alguns soldados ébrios que não conseguiram sair da intenção de a agarrar, continuando a sua imperturbável caminhada até entrar nas águas, que não mexiam à sua passagem, para grande espanto de alguns romanos que a observavam de perto.
Todos pensaram que tal facto se deveria à bebida ingerida, esfregando os olhos para sair daquele estado de alucinação ou miragem, mas sem resultados práticos.
Alguns tentaram caminhar na sua direcção, mas sentiram as pernas presas, incapazes de se moverem.
A jovem desapareceu numa tranquilidade de morte nas águas do rio, e durante alguns minutos o silêncio foi total no acampamento. Nem um único ruído. Até que os cavalos começaram a relinchar como loucos, levantando as patas no ar, tentando a todo o custo libertarem-se das cordas, tornando impossível que qualquer um chegasse perto.
Foram avisar o comandante daquilo que se passava, vindo este embrulhado no pano que o cobria até junto das águas, na esperança de ver aparecer o corpo da malograda rapariga, que todos pensaram, ele próprio incluído, havia escolhido a morte como fuga.
-Paciência, não faltariam mulheres bonitas na caminhada. E em todas desembainharia a sua libido. – Foi o que pensou quando já se retirava novamente para a tenda para descansar. Porém algo estava diferente na noite. Como se a luz da lua tivesse crescido de intensidade, transformando em manhã a noite curta.
E assim permaneceu, até a lua se retirar e um sol forte e quente se ter erguido por detrás do promontório.
Ninguém conseguiu dormir nessa noite, e os soldados falavam já da maldição das águas, temendo que o esquecimento se apoderasse deles com efeito retardado.
Quando se levantou, e enquanto se lavava, Júnio reparou numa mancha escura que ocupava todo o seu sexo e barriga, e que teimosamente se tinha entranhado na pele, por mais que lavasse, por mais que esfregasse. Quase entrou em pânico, pois quanto mais tentava, mais escurecia aquela nódoa de cor avermelhada, marca de sangue da noite anterior que não o largava.
Decidiu não fazer qualquer comentário acerca daquele facto, pois que nervosos já se encontravam os soldados, ansiosos por largar aquele lugar dos mágicos acontecimentos da noite anterior.
Assim fez. Mandou preparar as tropas e ninguém olhou para trás quando a marcha se iniciou, convencidos que haviam perturbado os deuses naquela travessia, temerosos como não convinha para as investidas que se adivinhavam.
Ninguém viu conforme se foram afastando, um corpo nu a surgir vertical das águas, um corpo imaculado de mulher, que caminhou sobre elas até à margem e se firmou na terra, fazendo nascer rosas à medida que se afastava em sentido contrário à marcha da legião.

Os séculos passaram. Uns atrás dos outros. A memória curta dos homens deixou para os historiadores os factos conhecidos da passagem dos romanos por estas terras do actual Minho. O Lethes chama-se agora Lima, e as suas águas passam a ponte de uma das mais antigas Vilas de Portugal.
Em Vitorino das Donas, no local aproximado onde há mais de dezanove séculos atrás se deu este episódio que contei, vive um homem de nome Júnio. (Nome que aparece algumas vezes na genealogia minhota. Estranhamente ou talvez não.)
É barqueiro. Atravessa algumas pessoas, poucas, que usam esse meio fluvial para chegar rápido á outra margem, em tempos de Verão, para se banharem nas águas e se refastelarem no areal branco que se avista do outro lado.
Certo dia em que conversávamos, o barqueiro, de cigarro que lhe ofereci aceso a um canto dos seus lábios e dedos queimados, contou-me uma estranha história:
Parecem falar os mais antigos da lenda da Senhora das Águas, que em manhãs de nevoeiro aparece nua como veio ao mundo nas águas daquele lugar. O meu interlocutor diz-me que ele próprio a viu quando era mais pequeno, juntamente com um primo que anda emigrado em França.
Parece que a “Senhora” fica por ali uns minutos, com uma estranha claridade nos céus, pairando sobre as águas serenas do Lima, transmitindo uma sensação de bem-estar e paz a quem a avista.
E é aqui que se dá o milagre que me conta, de olhos grandes, avistando-se neles ao fundo a sombra de uma vara estendida, sulcando as suas memórias.
…Há muitos anos atrás, vivia por ali um casal que se dedicava à agricultura e à moagem. Habitavam um moinho acima daquele lugar. Eram felizes, pois a terra era generosa para eles e faziam ainda bom dinheiro na moagem e cozedura do pão.
Tinham porém uma amargura na vida. A mulher não conseguia engravidar, e desejavam muito ter um filho.
As rezas nunca trouxeram o efeito desejado, muitos menos a copula. Era como se o seu amor fosse estéril, bem ao contrário da terra da qual eram filhos.
Certo dia em que passavam com o burro o açude seco, a mulher colocou mal os seus pés nas pedras, tombando para dentro da água. O aflito moleiro tentou por todas as formas salvar a sua amada, mas esta desapareceu nas águas, de cabelos trigueiros submergidos nas águas.
Mergulhou em vão para recuperar o seu corpo, e fizeram-no todo o dia em barcos os habitantes das cercanias, mas nem sinal do amor daquele homem.
Nessa noite, enquanto rezava, na vigília da sua tristeza, ouviu passos acercando-se do moinho, que estranhamente não se confundiam com o barulho das águas a correr nas pás. Nem o da pedra de moer, que pareciam ter-se calado.
Assim que veio ao exterior, uma estranha claridade estava por todo o lado, vinda de uma lua cheia, das maiores que algum dia havia visto.
Calçando-se da sua luz, a mulher que amava caminhava na sua direcção.
Estranhamente não conseguiu perguntar nada. Deixou-se só envolver nos seus braços longos, nos seus dedos finos, fazendo amor de corpos nus nas pedras gastas pelas rodas ferrugentas na calçada.
Passados nove meses, nasceu uma bela criança. Uma menina de olhos largos como o rio, a quem chamaram Roma.
E quando lhes perguntam porque o fizeram, fecham-se num sorriso de rosas que estava por todo o lado.”
Contei como me contaram.

domingo, 20 de julho de 2008

Apresentação do meu livro "Contos de água e areia" - Feira do Livro de Barcelos

António Paiva, escritor dos bons, um amigo que veio propositadamente da Madeira


Mas, comecemos pelo jantar: Flávio Lopes (escritor e amigo), António Paiva, José Torres, Vitor Pinho (Bibliotecário Municipal), Branco de Matos (escritor que apresentou o livro) e Fernando Soares (Dizeur)

A minha filha Beatriz leu a primeira página de "Beatriz e o espelho mágico"

Concentrada, leu muito bem aquela que tem olhos de azeitona...

Pedro Silva Torres, meu irmão, foi o ilustrador do livro.

Com o Paiva, que tem um talento natural para estar em público. Simplesmente fantástico...

Branco de Matos, alguém que me lê e por quem tenho profunda admiração e reconhecimento. Foi ele quem apresentou o autor e o livro.

Dois Senhores...


Com o Flávio Lopes da Silva que tinha apresentado o seu livro "sétimo vão" poucos minutos antes. (Presidente da Associação às artes )

Agradeço a todos quanto estiveram presentes e foram muitos, o que me deixa profundamente grato.
Amigos, conhecidos e leitores.
Ao Paiva, pela sua genoridade, a Branco de Matos por me compreender para além daquilo que escrevo, ao João Luz pela belissíma fotografia de capa e o meu irmão Pedro pelas ilustrações.
Até ao próximo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Feira do Livro de Barcelos


"Contos de água e areia"

Apresentação do meu segundo livro, em Barcelos, na feira do Livro.


Dia 2 de Julho, pelas 21,30.

Apresentado pelo escritor Branco de Matos.
Fotografia de João Luz
Ilustração: Silva Torres

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A página branca perdeu as asas

Foto: João Luz
A página branca perdeu as asas. Não traz no bico paz, muito menos um céu claro.
Um Homem feito estátua, feito de pedra nas palavras que não disse, espera ansioso que o pássaro inquieto do tempo lhe aponte o caminho, lhe segrede razões de voo capazes de o fazer quebrar as razões de mármore do seu imobilismo.
Pergunta-se se foi praga estranha que lhe rogaram, assim capaz de lhe cortar em silêncio os pulsos e a língua, vinda de dentro do peito a faca, vinda de dentro do tempo a mágoa, mas não encontra respostas.
Jaz, como jazem tranquilos, todos os que perderam os passos nos passos tranquilos dos pássaros que nunca voaram.

No fundo de um poço vivia uma lenda.
Havia uma mulher que por ciúme não dormia. Vigiava até os olhos lhe doerem os passos do seu amado.
Um dia, ensonada, seguiu o seu homem por uma mata vizinha à casa, até este parar junto de um poço agrícola.
Escondeu-se por detrás de um grande carvalho, esfregado os olhos de um cansaço quase insuportável, para que pudesse finalmente apanhar em flagrante o traidor.
Reparou que este se sentara na beira do poço, porém, apesar de falar com alguém, a enciumada mulher não conseguia vislumbrar a pérfida amante. Pensou que tal cegueira se deveria ao facto de quase não conseguir manter-se de pé, tantas eram as noites sem dormir, tamanha era a desconfiança.
Acercou-se um pouco mais, agora protegida por um penedo que se encontrava a escassos metros do local onde o homem se sentara.
Dali conseguia ouvir mais claramente aquilo que dizia, olhando para dentro daquele olho de água plantado no meio do terreno.
- Sabes, tenho a sensação de que a minha mulher desconfia de alguma coisa…Não dorme durante a noite, como que vigiando os meus sonhos. Sinto-a em todo o lado. Agora mesmo, tenho a sensação de que me espia…
- Não consigo viver assim, estou a um passo de a deixar…
A mulher quando ouviu estas palavras, saiu furiosa e descontrolada detrás do penedo correndo para o flagrante. Porém, quando de braços abertos tentava apanhar os seus fantasmas, tropeçou numa pedra que se encontra perto e tombou bem dentro do poço fundo, ouvindo-se o barulho da queda num som estranho que chegou em eco até à superfície.
O homem ficou estático, sem reacção. Depois chamou pelo seu nome, mas o som bateu nas paredes ovaladas e regressou até à boca, largo.
Ficou quieto, estranhamente quieto, e pela primeira vez na sua vida, mudo.

O escritor já não escreve. Uma vez mais as palavras levantaram voo deixando a sua página vazia.
Sente os pés a ficarem dormentes como pedra, um veio de morte a trepar rápido por si acima. Pernas e braços incapazes de esboçarem qualquer reacção. Depois, os músculos do pescoço a retesarem-se, os olhos a perderem o brilho, baços.
Um pássaro poisa no seu ombro e defeca nele.
As estátuas são definitivamente o sítio preferido dos pássaros fugidios da escrita e o tempo um poço sem fundo.
Já alguém perdeu nele uma mulher?

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Dia 2 de Julho, na Feira do Livro de Barcelos, apresentação do meu segundo livro

No dia 2 de Julho, cerca das 21,00, na feira do Livro de Barcelos, apresento o meu livro "Contos de água e areia".
São quatro histórias que se ligam pela água e se estendem num tempo de areia.
A fotografia de capa é do meu amigo João Luz e tem ilustrações de Silva Torres, meu irmão.
Convido todos os meus leitores e amigos a estarem presentes neste momento, especial para mim, na partilha daquilo que faço com tanto entusiasmo: escrever.

sábado, 24 de maio de 2008

Se a crise se acentuar vendo o meu cão


Parte I


Se a crise se acentuar vendo o meu cão


Tem pedigri,

Vacinas em dia.


Tem lombrigas,

Mas ninguém diria.


E se a crise se acentuar

Vendo o meu fígado


Tem um cão dentro dele

Mas ninguém diria.


Que se vender o meu cão

vendo-me nesse dia


Parte II

(Parte do leitor participante, espécie de carraça benigna...)


E tu queres vender o cão?

Um cão não se vende

Muito menos um homem

Há um cão dentro de cada homem

Que cada escritor sente através do fígado.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Porque me roem as térmitas os dedos?

Foto: João Luz
Respiro escrita pelos dedos.

Tenho as palavras nos poros encravadas como pelos.

Não me deixam dormir de tão ofertadas

Fazem barulhos estranhos durante a noite,

Como se fossem térmitas a roer-me despudoradas.


Sempre que olho para o lado vazio da minha cama,

Há mulheres deitadas com palavras, quase térmitas roendo-me.

Cada uma, um verso, um começo, uma prosa sem defeito.

Cada uma um final impossível de ser escrito.

Em cada uma um poema de alcova, insatisfeito mas dito.


E as que me olham desconfiadas,

Acendem cigarros no meu beijo e descruzam as pernas ao texto,

Como se eu tivesse merecido o direito à sorte,

Afinal, a minha vida é um eterno feminino:

- Palavra, escrita, desdita, morte.

A minha vida um desassossegado sopro de menino.


Já amei muitas palavras, fiz amor com o desgosto.

A quase todas despi os segredos, domestiquei os medos.

Fui amigo, amante, marido. Fui guerreiro e tombei ferido.

Sei que cada uma é uma só e o seu oposto.

Um pecado original repetido.


E se sei isto… porque me roem afinal as térmitas os dedos?

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Chamava-se Quim

Foto: João Luz
Chamava-se Quim. Não sei se alguma vez nos cruzamos nas ruas da cidade.

Desconfio que sim. Afinal as cidades são esmagadoramente pequenas por maiores que sejam.

E parece que morávamos até em Bairros próximos. Divididos por uma via rápida. A mesma que matou o escritor de rua esquecido, atropelado por alguém que nunca leu um livro.

Chamava-se Quim, e morava num pacote de heroína, que tinha dentro todo o lixo civilizacional. Chamava-se beco, cingia-se de prata e fogo.

Não sei se fui um dos que cruzou os braços, quando por ele passou na rua do esquecimento…

Não me lembro.

Não me lembro de mo terem apresentado, dizendo: Chama-se Joaquim, mora dentro dele um homem como tu.

Eu andava demasiado ocupado em ser racional. Andava cansado.

Por isso não o vi no escuro, quando entrou furtivamente na central eléctrica.

Não vi que levava as mãos nuas e sapatos de terra nos pés. Não o vi contentar-se com cobre, que nunca em menino sonhou com ouro, nem o ouvi a mandar calar o silêncio, quando um cachorro vadio o tentou alertar do perigo com um latido.

Vi o seu corpo em fogo naquela notícia de jornal.

Foram 15.000 volts de indiferença que o mataram.

Regresso a ti

Foto: João Luz
Fiavas as palavras horas a fio. Com o novelo dos dias, um após outro, tecias o longo tapete de tempo por onde te urdias.

Por isso, ninguém te esperava do outro lado de ti quando apareceste sem avisar, regressado de todas as viagens feitas num livro.

Amor e ódio de igual maneira repartido, ilusão e queda pelos mesmos sentidos.

Dos heróis clássicos vestias todo o romantismo: Romeu, D. Juan, Quixote…E havia até um certo modernismo na forma como calçavas a desilusão dos prédios, como te avistavas em cada janela espreitando-te. Em cada longa avenida de passos perdidos.

Chegaste sem avisar, e a cidade já não te reconhecia.

Lembravas-te de ter uma família, filhos que brincavam no pátio. Havia até um cão de orelhas espevitadas, mas não te conseguias recordar do nome.

Apanhaste um táxi inglês e foste à procura das tuas memórias. Desembocaram numa casa pequenina, daquelas que conhecias das fábulas, dos contos infantis. Telhas de chocolate, cerca de madeira pintada de vermelho vivo.

A casota do cão ao fundo do jardim era de banda desenhada e havia um balão por cima com a inscrição: zzzzzz… Caminhaste devagar para não o acordar. Bateste à porta quase em surdina, pois tinhas um certo receio de despertar em ti memórias de sonhos passados que não sabias se tinhas vivido…

Ouviste passos. Caminharam em direcção a ti. Abriram-te a porta.

Eras tu, e habitavas naquela casa de escrita, de onde nunca tinhas saído.

Sentaste-te na velha cadeira de baloiço que te ofereceste, bebeste contigo calmamente um chá que fizeste. Folheaste o jornal.

A notícia do dia falava de um escritor galardoado. Da forma como tinha intermediado um conflito armado e tinha sido alcançada a paz, de como os homens se tinham unido para construir um futuro melhor, participado e livre.

Recostaste-te na cadeira baloiçando de cá para lá no tempo, e nesse processo fechaste os olhos, satisfeito.

Lá fora, o chilreio das crianças, chegava finalmente pela mão da Primavera.

sábado, 17 de maio de 2008

O poema quase um sustento

Foto: João Luz
Calcei-me de bronze.

Num primeiro segundo, quase brilho

Os meus pés como chumbo, minha boca seca

Vesti-me de tédio, fiz a mim próprio um filho

O silêncio tinha pelos na língua.


Houve um céu que não tinha palato

Houve um sol que prenunciava chuva

Houve um armário guardado num fato

Houve tudo o que não houve.


Se ao menos a chuva se calçasse de bronze…

Palavra a palavra, fosse a escrita um grito

O poema quase um sustento

A verdade uma lança capaz de cortar o tempo.


Fosse o sonho a bronze escrito


E não seria capaz de te dizer

De te amar para o que houver

De te sofrer

Não seria capaz de te ter

Nem sequer trocar:

Poesia por mulher.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Deixem fumar o Sócrates

Foto: João Luz
Deixem fumar o Sócrates

Não bastava já o moço ter sido condenado á morte sob a acusação de corromper a juventude!
Por amor de Deus, deixem fumar um último cigarro a um condenado.
Filósofo que se preze, tem um cigarrinho ao canto da boca…usa jeans de quando em vez, e perdoa-se-lhe até um charrinho em noite de ida à discoteca…
Perante a lei todos são iguais. Sei disso, mas caramba, todos sabemos que perante ela, há uns que são mais iguais que outros.
Liberdade, igualdade, fraternidade...
São conquistas da Revolução Francesa, e não se pode agora guilhotinar o moço, só porque inventou a guilhotina. Por favor…
Deixem fumar o Sócrates.
Ele criou aquela coisa da maiêutica, que não sei se não é a mesma que pariu o Maio de 68, mas por favor não entrem agora em silogismos, tipo:
- Sócrates fuma, Sócrates é Homem, todos os Homens fumam…
È que não é verdade!
Sócrates já deixou de fumar. Logo, Sócrates não é Homem?
Porra, estou confuso…
Ele foi visitar um amigo que se chamava Chavez e mascava folha de coca. Um dia, na falta dela, mascou folha de couve. Nunca mais foi o mesmo. Nasceu-lhe um tinto carrascão em bica na orelha direita e um caldo quase verde na língua, sem acordo ortográfico pelo meio.
Calha-te!, gritou um rei sem cinzeiro para mim, na cimeira dos grandes pantomineiros.
E eu calhei-me, porque não tinha a chavez do sucesso na ponta do lábio socrático que me pariu.
Mas que fumei esta história, isso fumei.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

A minha tristeza tem um circo agarrado

Foto: João Luz

Que coisa estranha esta de a minha tristeza ter um circo agarrado.

E todas as artes se cruzarem na arte trapezista de assim ser. De acontecer dia a dia no arame das coisas agarradas a cada um de nós. Malabarista dos afectos. Numa mão tenho amor e dor; na outra esperança, e faltam-me mãos para me dizer.

Que não me caiam delas os sentidos todos, mais um sexto, de ilusão, que pelas palavras acontece.

Se sou fera domada, já em mim sou palhaço também, e o chicote dos dias imperfeitos teima em fazer-me rir no riso dos outros.

Nas minhas costas cravou o atirador de facas, toda a sensualidade das mulheres circenses, com cobras e cães, araras e outras coisas, finas e raras.

A vida armou uma tenda em mim. No trapézio voador do que sou há uma distância percorrida. Uma mão que esperou ser agarrada e caiu.

Caí com ela nesse dia.

Salvaram-me as costas de um elefante sem memória, em equilíbrio sobre uma bola que era o mundo.

Enforquei-me hoje na oliveira do meu quintal

Foto: João Luz

Enforquei-me hoje na oliveira do meu quintal. Não que tivesse dado conta. Contaram-me.

Pelos vistos, a angústia de existir tomou conta de mim. Segundo me disseram, nos últimos tempos eu andava já um pouco estranho, dando mostras de algum descontrolo, principalmente durante os telejornais, quebrando repetidamente qualquer televisão que encontrasse pela frente.

Mas segundo parece, também quando frequentava manifestações de grupos minoritários empunhando cartazes com palavras de ordem, quase todas incompreendidas pelos próprios manifestantes.

Houve vezes até, em que, segundo consta, pintei algumas caixas Multibanco com tinta preta. Tinha esperança que o mundo percebesse que o dinheiro tinha morrido, lado a lado com tirania, a exploração e a miséria. A fome.

Não me lembro.Lembro-me de ser domingo. De haver um padre igual a todos os outros. Tocava o sino na falta do sacristão, empenhado e de saiote subindo no esforço. Lembro-me das meias: Eram à Porto. Porra, eram à Porto…

Se me lembro disto, porque raio não me lembro que estou morto?

Morri pela hora do meio-dia. Dizem que morreu comigo um cão sarnento. Nem compaixão nem lamento.

Morri hoje mais uma vez. Não que tivesse dado conta, contaram-me.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O 25

Foto retirada do sapo
O 25 de Abril é uma pessoa de meia-idade sentada num baloiço.
Quando encolhe pernas para preparar o voo, leva na ideia do balanço, a liberdade. Quando estica pernas para voar, alguém as corta, mesmo que as cordas esticadas do baloiço cumpram a sua função.
A liberdade é esta ânsia que não tem amarras em nada.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Padre brasileiro desapareceu no ar

Foto: João Luz
O meu criado polvo segurava com um tentáculo o meu casaco, e num segundo oferecia-me a minha bebida preferida com cola. Ainda com um outro braço eficaz, rodava em destreza fina o volume do som da televisão e baixava o lume ao assado.
Um final de dia perfeito, pensei.
A mulher de duas cabeças e três seios, cumprimentou-me piscando o olho direito. As crias de centauro absorviam a sua atenção. Todas três.Refastelei-me no sofá, feliz da minha vida caseira de solteiro boémio.
O plasma da sala precisava de ser limpo. O último gambuzino motard que comprei ao chinês do bairro, espatifou-se numa 125 azul contra ele, largando no celulóide um viscoso líquido amarelado e de cheiro estranho.
O polvo, a braços com uma praga de gafanhotos gigantes na cozinha, cerca de oito, não tinha mãos a medir para a ocorrência, mas logo que se viu livre do primeiro, passou um paninho no ecrã.
De repente, uma notícia chamou a minha atenção. Um padre brasileiro partira em viagem agarrado a mil balões de hélio rumo aos céus, e estava desaparecido, presumindo-se que havia caído ao mar.
Emocionei-me assim que passaram a última gravação telefónica do padre pedindo auxilio aos bombeiros para o ajudarem a perceber o GPS que tinha levado, pois precisava de enviar as coordenadas do sítio onde se prevê que tenha caído.
O polvo sempre atento, passou-me um lenço para me assoar, que nessa altura já eu chorava compulsivamente. O mesmo pano que limpou o gambuzino.
Liguei à Júlia, foi compulsivo.
Do outro lado atendeu o seu holograma.
- Estás mais magra!
Respondi aleatoriamente.
Nota ao leitor: A notícia do padre desaparecido pode parecer falsa, mas não é. Já a minha percepção da realidade das coisas é uma verdade da qual teimo em me afastar, e que ando a tratar com lampreias.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Escritor Luso do mês de Abril

A Administração do site Luso-poemas.net, onde edito regularmente os meus textos, desde há um ano a esta parte, decidiu, não sei se merecidamente, nomear-me o Escritor do Mês de Abril do Site.
À semelhança daquilo que tem acontecido com outros escritores deste fantástico site, que quem gosta de ler ou escrever, deve conhecer, foi-me dado destaque na primeira página, através de uma entrevista, a que poderão aceder, e terei muito gosto em partilhar convosco, em:
http://www.luso-poemas.net/modules/smartsection/item.php?itemid=143
Um abraço deste vosso amigo, agradecido por me lerem e acarinharem como têm feito.
Até já.

quinta-feira, 20 de março de 2008

O escritor é a sua árvore

Foto: João Luz

Nem sequer uma ideia. Nada.

Desaprendera de escrever. Tinha a certeza que era isso que lhe acontecia. Uma quadra que fosse, de rima pobre, não importava; uma crónica infeliz sobre qualquer tema, uma prosa curta e sincopada.
Tentava mas não conseguia.

Não podia ser falta de inspiração, que mesmo quando disso enfermava, sempre escrevia qualquer coisa, nem que fosse para rasgar de seguida…. Mas então que raio se passava?

O escritor que já não o era, não encontrando respostas para a sua pensada desgraça, sentou-se no alpendre da casa fitando longamente a paisagem. Mudo e quieto.

Ficou assim por um tempo. Muito tempo...

As raízes romperam a terra e as tábuas, envolveram primeiro a cadeira onde se sentara, depois entrelaçaram-se nas suas pernas, abraçaram o seu tronco…

Sentiu-se invadido por uma estranha serenidade. Um pássaro colorido poisou num ramo que lhe saía dos dedos esticados da mão direita. Acariciou-o com a leveza das folhas.

Com o passar dos anos, o escritor que tinha desaprendido de escrever, transformou-se num imponente carvalho. De braços fortes estendidos ao longo do seu corpo alto e belo, fitando a paisagem à qual já pertencia...

Um dia o fogo chegou perto. Sentiu primeiro um imenso calor a subir pelo tronco, depois as chamas a roçarem-lhe a pele, secando lentamente a sua alma de madeira.

Um casal de bicos de lacre levantou voo apressado, deixando para trás o seu ninho de amor. Quis voar também, mas não conseguiu...

O Carvalho queimado que tinha sido escritor um dia, foi cortado pela base. Carregaram-no junto com outras vítimas da incúria dos homens num grande camião, a caminho da fábrica de papel.

Depois de um processo longo de transformação, acabou muito enroladinho, pronto para uma nova etapa.

Estava encantado, e nem mesmo quando a afiada guilhotina dispersou o seu ser por mil folhas brancas, se sentiu perdido ou só.

Estava vivo em cada pedaço.…


...

O escritor não consegue escrever. Falta-lhe inspiração, vive angustiado no branco do papel…Deixa rolar uma lágrima dos olhos, que cai na folha imaculada que tem à sua frente. Estranhamente esta deixa uma marca de sangue no papel.


- Já sei, disse, como se de repente a inspiração tivesse voltado.


E começou a pintar a folha com palavras.