quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

"Beatriz e o espelho mágico" na voz de Luis Gaspar

Luis Gaspar, esse fantástico dizeur de palavras, homem cujo trabalho de divulgação de novos autores deve ser enaltecido, teve a amabilidade para comigo, de gravar este conto editado aqui no blog, e que faz parte do meu próximo livro.
Gostaria de o dedicar a todos os meus amigos, da escrita e fora dela, a todos que visitam este meu espaço.
Votos de amor e paz neste Natal, em cada um de vós.
Voz de Luis Gaspar, em 19-12-2007
Link:http://www.estudioraposa.com/index.php/19/12/2007/076-jose-torres/

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

"O rapaz que escrevia poemas"




Não sabia bem como lhe acontecia.
Dava por si de caneta em riste, papel branco desafiando-o a escrever a alma, uma alma de que desconfiava, porque era tenra a pena com que se cingia.
Tinha tão só meia dúzia de impertinentes pelos no rosto, tão poucos que o espelho se ria, cada vez que a lamina afiada decapitava borbulhas adolescentes, confundidas.
Porém, apesar do corpo não negar a idade curta que tinha e o selim da sua bicicleta nunca ter precisado de ser subido, pedalava nele uma espécie de ansiedade de viver, coisa estranha para um jovem da sua idade.
O refilar dos pais era uma espécie de campainha.
Soava-lhe alto nos tímpanos, tão alto, que por vezes nem a ouvia.
Perdia-se por inteiro em meias folhas de papel, caderninhos de merceeiro de capa dura, mata-borrão para copos de tinto distraídos em tascos de aldeia.
Frequentava-os numa altura em que não havia máquinas de tabaco com controlo remoto a partir do balcão, nem fumar matava.
Gostava de se perder nas histórias de bocas amarelecidas dos mais velhos, posta de bacalhau frito à espera de uma espinha para continuar a palavra arrancada pelo dedo sujo da poda ao palato entretido da conversa.
E como se perdia nesses relatos. A espaços sacava da orelha que tinha em cada conversa um afiado lápis para memória futura. Fazia-o inconscientemente.
A mesma inconsciência que o empurrava vereda acima pela adolescência, disposto a experimentar todas as sensações fortes que coubessem dentro dela.
Pelos dezasseis, dezassete anos, cadernos e cadernos de poemas escritos, palavra a palavra, sem espinhas.
Envolvia-o um amor sem rosto pelas letras. Como se alguém, quase certo um Deus, tivesse semeado dentro de si uma nesga-semente de vida, que nas condições ideais florescia em cada letra riscada, debitando segredos para dentro de folhas quase azuladas, no tempo das vinte e cinco linhas.
O seu nome, João.
Rapaz de um garbo fulvo que pelos cabelos ardia, de uns olhos verdes de água, que quem olhasse para dentro deles descobria peixes, e onde as namoradas ancoravam bocas sedentas de saber mais, um pouco mais além do que sabiam através da mão exploradora dos sentidos.
E como as amava. De cada uma retirava um poema, que depois colava noutro.
De cada uma um tema.
Os olhos de Joana, os dedos finos de Maria, os seios pequenos de Vera.
Vivia em todas: gentil, cavalheiro, dado.
Não sabia dizer que não, que pela boca morria traído pela bondade, essa que habita no conforto de se saber vivo nos outros, biógrafo das vidas, tudo menos alheias.
Por vezes, acontecia-lhe até o estranho facto de acordar a meio da noite, de poema escrito na cabeceira dos sonhos, que passava para o papel de uma vez só, de um só fôlego, num êxtase quase caricato a que só assistiam as riscas do pijama azul que a avó lhe ofereceu nos anos.
“…
Vieste do mar, meu búzio d’areia
E trazias no regaço um mar d’história
Corpo de sargaço, corpo de sereia
Num tempo de fadas sem memória

A praia do teu ventre d’água revelada
Encontrou-se nas areias dos meus pés
Cantando a noite e a doce madrugada
No bailado suave das águas das marés

Tomei-te na alma como quem diz
És tudo o que sempre sonhei
És tudo que eu sempre quis

Tomei-te no corpo, tua alma amei
Foi sempre isto que me fez feliz
Memória do mar que te lembrei”


E esta curiosa ligação com as palavras acompanhou-o pela idade adulta.
O gosto pelas letras levou-o à Faculdade, no primeiro encontro com as cadeiras poeirentas da velha teoria literária, mas também com a fervilhante actividade artística que acompanhava as lides académicas.
Apesar de algumas amizades feitas, o seu melhor amigo continuava a ser um livro.
O livro ainda não escrito, espécie de página branca do que falta dizer, ou folha preenchida de todas as perguntas sem resposta.
Nele se vestia dia após dia com a pele dos dedos, teimando por uma solução.
A que lhe respondesse à questão do poema escrito dentro dele, que lhe fazia dizer o amor antes de o sentir, a saudade antes da partida, a dor antes de a sofrer…
Era uma coisa estranha, essa que o levava a escrever textos antes do tempo, nomeando sentimentos que só vinha a experimentar anos depois de os ter narrado.
O amor estava em quase todos os poemas e um dia encontrou-o.
Foi numa manhã fria de Novembro. Passeava pela praia esquecido, completamente possuído pela bravia força com que as ondas do mar tomam a areia, de olhos largos no horizonte de pássaros e espuma.
Quase tropeçou nele, no momento em que desajeitado ficou segurando aquela ninfa nos braços, desculpando-se do seu intempestivo e descuidado caminhar.
- Mil perdões, conseguiu articular.
- Caminhava distraído…
- Eu reparei, respondeu-lhe olhos nos olhos a jovem.
E como era bela, de cabelos-sargaço e olhos fundos, num corpo que de tão gracioso apetecia tocar, sentir, cheirar.
- Posso desculpar-me, convidando-a para tomar um café?
- Claro que sim, anuiu.
Fizeram-no durante anos seguidos, que nunca mais se afastaram um do outro.
Viviam numa paixão transbordante de carinho e afecto e o escritor dedicava-lhe as melhores páginas que alguma vez escreveu, agora na sensação de que o tempo parara. Nem passado nem futuro, só o tempo presente contava, e não tinha a sensação já de que escrevia por antecipação os sentimentos vindouros da sua vida.
Rosário, assim se chamava aquela deusa, responsável pela alegria de viver de João, pela sua constante inspiração nas letras e na vida.
Certo dia, tomado por uma gripe aborrecida, daqueles que fazem tremer em pleno verão, João recolheu-se na cama aos mimos da sua amada, mais os chás quentes de ervas e mel, duplo conforto para o seu corpo dorido pelo virús.
Precisado de fazer chegar ao correio o original de mais um livro de poemas, que o seu editor aguardava com ansiedade, e impossibilitado de o fazer, logo Rosário de casaco pronto se dispôs a percorrer as poucas centenas de metros que separavam a sua casa da estação, cumprindo com agrado a missão de levar a passear as palavras que tão bem conhecia, uma vez que vivia nelas.
Despediu-se com um beijo que não chegou a tocar os lábios de João.
A porta da rua fechou-se atrás de si ligeira, que apressada era a vontade de regressar a casa e envolver de cuidados o seu amado, feliz pela dádiva desse amor correspondido.
João pressentiu o perigo num arrepio que não foi de gripe, um tudo nada antes da travagem demorada do carro, logo seguida de um abafado estrondo que lhe secou a garganta, incapaz de gritar.
Fizeram-no por ele as vizinhas.
Quando chegou à rua, andavam no ar ainda papeis, um dos quais, deslizando com suavidade, foi poisar no peito ferido da sua deusa que veio do mar, cabelos-sargaço enrodilhados no rosto, papel mata-borrão que absorveu lento o sangue.
Tomou-a desfalecida nos braços beijando o seu rosto e segredando no seu ouvido em forma de concha:
-Está tudo bem meu amor, estou aqui contigo.
A resposta não veio, só um cheiro a maresia por todo o lado e um vento norte levantando poeira na estrada.
As várias fracturas que sofreu no acidente demorariam tempo a curar, mas mais tempo demoraria a sua alma a acordar, pois caiu num coma prolongado, de diagnóstico muito reservado, olhos fechados por quatro paredes brancas de hospital.
João viveu pelos dois todos os dias acordado, dizendo poemas na cabeceira daquela cama, colocando flores junto ao seu rosto de traços finos, intocados pela violência do embate.
Passaram-se semanas, meses.
Num dia em que o sol andava alto, e a janela daquele quarto se abriu para o cumprimentar, o milagre aconteceu. Primeiro uma breve piscada, depois um pulsar quase nervoso da pálpebra, finalmente dois lagos de peixes abrindo em cor. Verdes profundos, verdes próximos, amados.
João gritou de alegria, de uma felicidade plena que ecoou pelo hospital e trouxe consigo na volta, médicos, enfermeiros, o rapaz da perna partida e a Senhora do quarto ao lado, mesmo tendo sido operada às varizes.
Os dias seguintes foram de enorme expectativa, de exames prolongados, análises a tudo e mais alguma coisa.
A ansiedade tomou conta do escritor, mas feita agora de razões diversas daquela que sentia em adolescente, quando tinha pressa de viver e experimentar todas as emoções fortes da existência.
Rosário havia perdido a memória, as lesões no cérebro afectaram-lhe a capacidade de recordar fosse o que fosse, incapaz de reconhecer o seu amado, de partilhar a emoção do reencontro, de se perder nas suas palavras, ditas pela boca da alma, retirando delas sentidos, causas.
Quando regressaram à sua casa, a dois passos da praia, no dia em que o fizeram, as gaivotas esperavam-na planando à volta do simpático moinho recuperado, gritando intervaladas, como se cada uma a quisesse cumprimentar. Rosário sorriu.
Começaria um processo longo de aprendizagem, o de nomear as coisas, de juntar pequenas peças ao grande puzzle da memória.
João estava determinado a ser persistente, e assim que a sua amada passou a soleira da porta, logo reparou em centenas de pequenos papeis escritos em cada coisa: Mesa, cadeira, cama, jarra, panela, copo, flores, poemas…
Era preciso começar do início, mesmo que Rosário não o reconhecesse como a sua metade, mesmo que perdida em pensamentos dispersos, em muito vagas lembranças de algo que não sabia dizer, não podia dizer.
Por vezes durante a noite acordava sobressaltada como se possuída de um medo terrível, que depois de desperta e confortada por João, não conseguia identificar, tombando a tez suada sobre a almofada, acabando por cerrar novamente os olhos.
João não escreveu mais nada nesses tempos que não fossem pequenos papéis, etiquetas para as coisas, que colava em cada peça, na esperança que um dia a luz inundasse a alma da sua amada e pudessem falar novamente a mesma linguagem.
Rosário quase não falava. Quando estava em casa, sentava-se na cadeira de baloiço, observando longamente o mar, embalada pelas águas das marés, ou nas asas das gaivotas que sempre a vinham cumprimentar, fazendo da sua casa o porto de abrigo de todas as horas.
Outras vezes, saía para demorados passeios pelo areal, recolhendo búzios e conchas que depois trazia no regaço e espalhava pelo jardim.
Refugiou-se num silêncio onda cabia a água do mar e as estrelas do céu.
Deixou de comunicar, mesmo com João. Os seus únicos amigos eram as gaivotas e o vento que as embalava.
Uma noite, em que o luar torna todas as coisas visíveis, fazendo das águas um espelho prateado, o poeta que tinha momentaneamente deixado de o ser, simplesmente porque já não escrevia, acordou sozinho na cama. Chamou por Rosário esperando que esta estivesse à distância curta de uma palavra, mas não.
Levantou-se e acercou-se do alpendre. A cadeira de baloiço que tinham comprado juntos na lojinha de móveis usados da vila, balançava ainda suavemente.
Quase instintivamente os seus olhos levantaram-se para o mar. Dentro de água, levantando pequenas ondas no forçar suave dos passos, a sua amada caminhava em direcção ao horizonte, onde uma lua gigante, das maiores que tinha visto, a parecia esperar refastelada.
Gritou:
-Rosário!
A ninfa de olhos verdes demorou um eterno segundo a voltar a cabeça em direcção ao areal, onde a sua camisa de linho estava caída, branca e amarrotada da forma como lhe deslizou do corpo.
Rosário levantou a sua mão de dedos abertos como que despedindo-se.
João correu, da mesma forma como o fez no dia do fatídico acidente, com o coração na boca, sôfrego e ansioso por socorrer a mulher amada.
E apesar de tão depressa o ter feito naquela centena de metros, conseguiu somente vislumbrar os cabelos-sargaço de Rosário a abraçarem as águas, submergida por fim dentro delas.
Entrou ele próprio no mar, nadando apressado em direcção à lua.
Quando pensou estar sobre o sítio onde o corpo desaparecera, mergulhou decidido.
A transparência das águas deixava ver com nitidez o fundo arenoso, aqui e acolá uma pedra, um peixe adormecido, mas nem sinal de Rosário.
Voltou a tentar, encheu largamente os pulmões de ar, que quase lhe doeram do esforço e mergulhou mais à frente.
Passou raso ao fundo, volveu o corpo para a direita e para a esquerda, subiu um pouco e de repente…no limite do fôlego, à sua frente, de cabelos abertos sobre as águas, olhos da mesma cor, sorrindo delicada na sua nudez, a diva dos seus poemas.
Esta abraçou-o e envolveu-o, tranquilizando-o.
Beijou largamente a sua boca dando-lhe o ar de que precisava para retornar à superfície, bateu num sulco rápido os seus pés juntos e desapareceu levantando areia do fundo.
Assim que João volveu à superfície, deixou de mergulhar.
Permaneceu sozinho boiando nas águas cálidas, fitando o horizonte pela estrada da lua.
…………………………………………………………………………………………….
Velho João não mais escreveu. Uma linha que fosse.
Vive no seu moinho onde poisam gaivotas que alimenta com algum peixe miúdo que traz da faina. Tornou-se pescador.
É vê-lo remendando redes na soleira de casa, ou simplesmente fumando o seu cachimbo na velha cadeira de baloiço, fitando o mar tranquilo.
Não faz nenhuma pergunta ao vento, sabe todas as respostas.




A incluir no meu próximo livro a editar brevemente.


Todos os direitos registados

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Apresentação do meu livro em Barcelos - 15/11/07

O meu sorriso nesta imagem, quando deveria ter cerca de 5 anos de idade, é o mesmo que tenho hoje, para vos dizer da minha gratidão, da minha vontade de ser feliz, vivendo em comunhão com todos, a quem me dou pelas palavras e pelos actos.
É uma das imagens do belíssimo trabalho que Sandra Torres fez para mim em Power-point, apresentado nessa noite.
Obrigado, do fundo do meu coração


Dr. Vitor Pinho, bibliotecário municipal e que me fez o convite na última feira do livro de Barcelos. Foi o moderador de serviço.



José Lourenço (JSL), meu amigo de sempre, apresentou o homem e o cibernauta.






O regresso à minha cidade natal ficou marcado por uma profunda emoção, em comunhão com todos quantos se deslocaram ao magnífico auditório da Biblioteca Municipal. Um dia muito especial que guardarei no mais intimo do meu ser.



Os meus convidados de honra, que foram os grandes responsáveis pelo brilho que teve esta apresentação. Estou-lhes grato na amizade que nos une e no amor às letras. À minha Direita na foto, o Dr. Jorge Cruz, em representação da Srª vereadora da Cultura, da Câmara municipal de Barcelos




O meu filhote adorou toda a envolvência da apresentação e esteve junto a mim com carinho, prazer, brincando á minha volta.




Armindo Cerqueira, um dizeur, outro amigo, que emprestou todo o seu enorme talento aos meus textos. Fez brilhantemente a apresentação do livro.




Uma vista dos muitos amigos e conhecidos que me acompanharam




O Gonçalo e a Bea (olhitos de azeitona), adoraram estar com o pai




Vasco Santos e os "Canibais do Poema"





A minha filha beatriz disse um poema da sua autoria e um texto do pai





O meu amigo Carlos Moreira tocou e encantou com temas populares e um da sua autoria












segunda-feira, 19 de novembro de 2007

"A última cartada"


“…Uma sebe três anos…Um cão três sebes…Um burro três cães…Um homem três burros…”

Assim falou João de Barbudo, homem do tempo em que a tuberculose matava tanto como a fome, numa mesma míngua de cuidados; uma porque a cura por vezes matava, outra porque também…


Desde cedo, Mestre João, carpinteiro de todas as coisas mais aquelas que não tinham arranjo, se habituou a recolher às arvores o fruto, ao mosto o vinho, à caridade a broa.


Mais novo de sete irmãos que já partiram e o Senhor os tenha. Mais velho de todos.


Oitenta e um anos de vida, alguns de França, lá pelos anos em que se passava a salto, que havia homens da raia que o faziam a troco de ficarem.


Ficarem num país de meia sardinha, batata, pão de milho e tabaco estrangeiro, para fumar em dias de irmãos que chegam, mesmo assim menos raros que os dias de fome e falta, que eram todos os outros.


Tempos houve, em que os galos de capoeiro, enfraquecidos, não cumpriram os desígnios ovulares para que eram talhados, e os retalhos da franga deram carne que se visse, um pouco mais além da canja. Ovos sequer para as horas sem dormir dos dias de estômago acordado.


O cognome Barbudo acompanhava-o, mesmo tendo a face limpa. De Barbudo, porque assim se chama a terra que o viu nascer, a dois passos de Braga, mais concretamente quinze kilómetros, feitos a pé, em fato curto e apertado, com cheiro a comunhão solene feita há mais anos que o prazo de duração que tinha o Bilhete de Identidade caducado.


A ida à grande cidade era um acontecimento maior que o velho castanheiro que matava a fome pelo Outono, que a castanha servia para todos, mesmo para o porco enfezado, que nesses Outubros ganhava cor e um certo garbo.


- Eram outros tempos, esses tempos de miséria…Disse isto enquanto fazia dama no tabuleiro de companhia diária, perante o desagrado do jovem jogador de cabeça cansada de ser coçada.


- Chico traz aí uma taça que paga o moço.


- Olhe que a partida ainda não está perdida, refilou um pouco ansioso o condenado.


- Condenado a não pagar, que Mestre João sempre fazia questão de não aceitar, no preciso momento em que uma certa vergonha e desilusão puxava da carteira para cumprir a pena…


Era uma espécie de lição gratuita de civilidade, de fair-play, palavra que não lhe dizia coisa nenhuma.Gostava mesmo era de jogar.


Podia ser às damas, ao dominó, ou às cartas. Acompanhava-o desde novo uma especial apetência para os jogos, mais uma estrelinha de sorte, que lhe trazia as cartas precisas na altura certa, ou a distracção de uma má jogada do opositor no momento ideal.Toda a gente lhe reconhecia a sagacidade e lhe elogiava o bem jogar. O seu nome era admirado de pai para filho, vivia nas histórias de jogo e até nas de pesca, onde aí também a sua mestria dava cartas.


Não havia rio ou riacho na região que não lhe conhecesse os passos silenciosos, que em vez alguma os galhos tombados das beiradas tiveram algo a dizer, nem truta que fosse lhe fugiu por causa de um descuido de bota a estalar o caminho sorrateiro dos amiais.


Todos se perguntavam do porquê de descobrir com facilidade os locais onde o peixe tranquilo se escondia, de adivinhar os seus movimentos, as suas insondáveis vontades e caprichos.


Parecia que lhes tomava vantagem, esperando-os na curva da surpresa, onde a fome avista a minhoca e a abocanha decidida.


Aos oitenta e um, João de Barbudo não é homem de hábitos rígidos. Para além das duas idas diárias ao café da aldeia, mais ninguém lhe consegue seguir os passos e, há dias até, em que o fiel “pintas” lhe não põe olhos e língua em cima, e não tem outra alternativa que não seja ladrar á anafada vizinha da casa em frente, esperando uma caridade em forma de osso.


A sua independência e autonomia rivaliza com a de todos os outros idosos, para quem o simples percorrer de caminho de casa à igreja se assemelha a um calvário, várias vezes feito, como se procurassem expiar os pecados de uma existência curvada ao peso de anos, amparando-se na bengala da rotina.


Naquele sábado á noite, dia de futebol na televisão, levou-o ao café do Chico uma vontade de beber um brandy morno e um café, que o cigarrilha, essa trazia-a de casa para uns momentos de gozo de fumo, gesto que não repete muitas vezes, mas que faz com verdadeiro prazer, expirando largamente o fumo que não chega a engolir.


Ao fundo joga-se sueca.


Velho João, que não é velho, gosta de se sentar a ver o jogo sem dizer palavra, ao contrário de muitos a quem só lhes falta jogar a carta pelos intervenientes. Uma coisa irritante…


O Espanhol refila sempre, mas é um belíssimo jogador, dos mais respeitados, mais não seja pelo vozeirão habituado a competir com as barulhentas rebarbadeiras que usa na sua actividade.


O Manel Fininho, rapaz mais novo, é seu parceiro nesse dia e já esgotou todas as teorias para se justificar perante o Espanhol da opção de jogar a bisca. Sem sucesso.


Com as duas “caralhadas” sonantes que lhe são dirigidas, Manel fica a desconfiar até da própria existência.


A selecção está a ganhar por três a zero o que retira interesse ao jogo, mas não ao de cartas. Chegou ao café um par já conhecido, homens da Barca, gente costumeira nos jogos a dinheiro.


Distinguem-se pelas samarras de gola de pele e pelo enchumaço da carteira no bolso de trás. Deixaram o Opel Kadete GT Turbo a refilar na rua com um cão menos interessado em marcas.


O Chico, o dono do estabelecimento gosta dessas emoções. Gosta de apostar o que tem e, às vezes o que não tem. Gosta da sensação de poder desafiar o destino que lhe querem reservar, de vinho a copo e diárias ao meio-dia.


Uma ou outra vez havia provado o sabor azedo de fel da perda, centenas de contos de uma só vez, dizem.


Naquele dia o comerciante tivera uma espécie de premonição de sorte, coisa vulgar entre os jogadores de cartas, uma espécie de sintoma de vício, que o jogador identifica mas é incapaz de combater.


Assim, quando os forasteiros lançaram de um trago a ideia de um joguito a dinheiro, logo Chico, de coração na boca largou um entusiasmado:


- Vamos a isso!


O avental soltou amarras da cinta e espalhou-se amarrotado num dos cantos da arca frigorífica, com ele o cheiro a carne e molho da refeição do dia.


Passou os dedos engordurados no cabelo e quase sentiu uma réstia de cheiro do After-shave Dénim que a mulher lhe compra na mercearia do Neca.


Estava pronto.


De uma prontidão quase sufocante, o grupo das cartas foi conduzido para lugar mais recatado, nas traseiras do café, fechando-se portas para quem vinha de fora, que por aquela hora também seriam poucos.


João de Barbudo ficou na sala, estava a saber-lhe bem o Brandy e ainda voltaria a acender o puro. Nunca quisera saber de jogos a dinheiro e também não seria hoje o dia.


Dos fundos começava a chegar o eco das primeiras emoções. Barulho de dedos a bater na madeira, vozes a acompanha-los, seguidas de decididas análises à jogada, como que explicando o óbvio a quem via.


Chico estava a ganhar. Corria-lhe bem o jogo e ele até já sabia que iria ser assim. Tinha-lhe soprado ao ouvido um anjo vestido de valete na noite anterior.


Estava entusiasmado e mandou o moço buscar uma rodada para toda a gente.Acontece que tão depressa como começou a ganhar, com a mesma volúpia, começou a correr atrás do prejuízo, apostando cada vez mais dinheiro, subindo paradas em cujas franjas já não tocavam fanfarras, que a desilusão geral da assistência já não fazia bater as baquetas da sorte.


A coisa estava negra, tão negra como a noite que se adivinhava lá fora. Os vidros embaciados, mistura de ressoado ar e sujidade, que escorria agora para dentro do desconsolado jogador. Em pouco tempo voaram do seu bolso os dias todos de apuro da semana e já assinava cheques, coisa que só fazia para pagar a alguns fornecedores, num febril e alucinante ritmo.


Estava perdido. De um desespero enganado de que ainda dava a volta ao resultado, o mesmo desespero que por certo acompanhava os Arménios, a jogar com Portugal e a perder por quatro ao fim de 89 minutos.


João, carpinteiro da vida, tinha aprendido a escutar os silêncios, mais os ruídos surdos do desânimo. Apercebeu-se de que algo se passava. De muito mau.


Chico suava mais que um porco enfezado antes de Outubro. Estava à beira de naquele poker de emoções, perder anos de trabalho, de vida dura como a madeira dos pipos, de se desgraçar…A determinada altura, a perder mais que o que algum dia lhe fosse possível ganhar, arriscou tudo…


- Jogo tudo o que perdi, por troca com o meu café. Com uma condição:


- joga por mim as últimas partidas, defendendo a minha honra, Mestre João de Barbudo…


Os elementos da mesa, mais os dois “estrangeiros” em ar de conluio, riram-se da pretensão…


- Já disse! Resmungou, agarrando-se à fama de Mestre João, que ainda nada sabia do assunto.


Procurou-o pelo cheiro do charuto que da sala se encostava às paredes, chegando sem avisar à mesa de jogo. Só agora o havia sentido. Só agora.


- João, você foi amigo de meu pai…começou por dizer.


- Foi, dizem por aí até, namorado de minha mãe antes de meu pai chegar aqui para se estabelecer…


- Preciso que me ajude, por favor.


O de Barbudo, continuou mudo.


- Rogo-lhe por tudo que jogue por mim e tente recuperar o meu dinheiro, a minha casa, a minha vida. Por favor, repetiu.


Mestre João levantou-se, apagando um nada de tabaco negro sobre o barro pintado do cinzeiro.


- Com uma condição, disse o velho, que não era velho.


- Qualquer uma, respondeu-lhe o aflito jogador, ganhando um pouco de cor.


- Jogarei por ti na condição de que será a última vez que o faço. Nunca mais tocarei num baralho de cartas, nunca mais jogarei jogo algum que seja, apagarei da memória todos os dias passados, todas as lições que dei, todos os que nunca souberam perceber o jogo e o seu prazer.


- Tu farás o mesmo, sem nunca o teres chegado a compreender…


O aflito disse que sim com a cabeça, mas não chegava. Era preciso a palavra.


Essa que o vento leva enrolada noutras, que formam bola, todas juntas, novelos de cada um, meada que ninguém segura do outro lado do fio.


- Prometo-lhe Mestre. Juro-lhe pela minha mãe.


- Jura-me por ti, por quem és. Não jures por quem não está, já partiu.


- Jura-me pelos dias todos em que te vi crescer!


- Jura-me porque estive por perto!


- Jura-me porque te guardei no peito sempre!…


- Juro.João de Barbudo que não o era, acercou-se da mesa de jogo, cumprimentou olhando cada um nos olhos.Foi recebido com respeito.


Desviaram-se cadeiras nos olhos cansados de alguns, arrumaram-se copos num soslaio.


O jogo final estava lançado. Distribuídas as fichas, alinhadas as cartas, e um bater nervoso de pé de alguém que a toalha escondia…


- Full house, e João recolhe as fichas.


- Poker de valetes!


- Full de ases e recolhe o dinheiro perdido e alguns cheques…


Passadas poucas jogadas, que a parada era alta, João jogador que deixaria de ser, velho que não era, olhou o adversário final que lhe restava. Nos olhos, mais uma vez.Viu-lhe a alma, e o outro sentiu um arrepio, que iludiu num trago que lhe esmurrou o estômago.


- Vamos a isso, disse o da Barca engolindo a azia que lhe retornou ao sítio de onde veio e novamente á boca numa baforada sem aviso.


- Tudo ou nada, quase soluçou…


Chico acenou apressado com a cabeça.Mestre João disse-lhe:


- Lembras-te do que prometeste?


- Sim, respondeu rubro e cabisbaixo.


- Ergue a cabeça então e vê a tua vida em cada carta que eu levantar. E seja qual for o resultado disso, aprende.


O Coupier lançou em quase slow-motion as cartas para a mesa. As vozes pareciam demorar uma eternidade a sair das gargantas, sinalizando as opções.


Era decisiva a carta que levantaria.Ou completava a sequencia Royal que tinha de copas ou o bluf do outro, do da Barca, terminaria ganhando com dois pares, que não tinha mais que isso…


Faltava-lhe a dama. A de corações partidos, a que um dia o deixou para outro sem aviso. A que partiu para a terra funda, sem nunca ter dito uma palavra que fosse de conforto, nem que isso fosse uma espécie de murro no estômago…


Recolheu a carta.Levantou-a para os olhos verem. Brilharam rubros ao fundo, na primeira imagem que os outros viram através deles.


Era uma copa sim a carta.


Mas não era a dama…


Francisco Milheiro, o Chico, caiu redondo no chão que já não era seu. Já nem isso tinha.


Mestre João de Barbudo recolheu o baralho da mesa guardando-o no bolso, mais o casaco da cadeira. Colocou o seu chapéu de aba, abriu a porta com cuidado e saiu.


Nos meses que se seguiram, a vizinhança deixou de ouvir ladrar o cão.


O “pintas” tem comido por casa. A sua actividade e aspecto cuidado é quase a única garantia que têm de que João de Barbudo, jogador extraordinário de todos os jogos, está bem.


Deixou de sair, é avistado de fugida algumas vezes a enrolar estranhos cordéis, fazendo novelos que depois deixa largados no jardim.


Ninguém sabe bem o que lhe irá na alma. Contam-se já as histórias que se transmitirão nos tempos futuros, de geração em geração.……………………………………………………………………………………………..............


Um dia o “pintas” voltou a ladrar à porta da anafada Gorete costureira.


Mas não foi por um osso.Ladrou para avisar que o dono partira. De vez. Numa viagem sem regresso.


Estava deitado tranquilo na cama quando foi encontrado. Vestia o fato que habitualmente levava para a pesca, as botas de borracha, e ao lado a cana truteira alinhada com o cacifo.


O funeral foi simples. Como não tenha família viva, o cortejo fúnebre conseguiu levar algumas gentes da terra, mais uns velhos, que eram mesmo velhos, seguros por bengalas de tédio.


Segurando o caixão, numa das abas, Francisco Milheiro, bilhete de identidade caducado por falta de uns trocos, o Chico.


O que também era de Barbudo.


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Recolhido por caridade em casa de um amigo da freguesia, Chico nessa noite fechou-se no quarto, barriga de fome dilatada, para uma noite mal dormida, agachado como um ovo nos seus pensamentos.


Bateram à porta.


O Fredo disse de fora:


- Ó Chico, está aqui um oficial de justiça para falar contigo…


Abriu a porta desdobrando-se sobre si mesmo, como que arcando com a consequência lógica de um final sem história…


Mas a história era outra.


- Sr, Francisco Milheiro?


- Sim, sou eu.


- Venho notificar o Sr. de que na próxima sexta-feira, pelas 14,00, na Secretaria do Registo Notarial, será lido o testamento de João Afonso Morgado, tendo o Sr. sido arrolado como herdeiro.


Não queria acreditar em tal coisa. Herdeiro?


Ele que havia perdido tudo, e até, pensava, a consideração de Mestre João.


No dia indicado deslocou-se ao local de leitura previsto. Quando pensou que estariam lá outras pessoas, estranhamente ele era o único. Ele e o Notário. Olhos nos olhos cabisbaixos de Francisco.


- Passo a anunciar os bens em testamento de João Afonso Morgado:


- Uma casa sita no lugar de Pena


- Um valor em dinheiro de 193.234 euros.


- Uma carta e um baralho de cartas para ser entregue a Francisco João Milheiro de Sousa.


E dizendo isto entregou o envelope e o baralho ao Chico, referindo que essa era, antes de mais, a vontade do falecido.


Dizia assim:




Caro Francisco,


Espero que ao receberes esta carta te encontres bem contigo próprio.


Fui-me embora, desculpa.


Deixei de ouvir o barulho da água, que sempre ouvi, mesmo sem ir à pesca.


Deixei mesmo de saber falar com os peixes.


Podes não entender o que te digo, mas acredita que se parares para ouvir o teu coração, se desejares muito isso, sentirás todos os rios dentro de ti, todas as cachoeiras da alma a fluir no teu peito.


Tenta…


Há palavras que nunca te direi. Desculpa-me por isso.


Vive cada dia da tua vida como se fosse o primeiro dia. E como me lembro ainda disso…


Deixo-te todos os meus bens. Guardei ao longo dos anos tudo aquilo que não me fez falta, não é muito, é um começo de nova vida para ti.


Espero que a promessa que me fizeste de que nunca mais jogarias se mantenha até ao final dos teus dias.


Por ti.


Nota: Naquele dia, naquele último jogo, a carta a sair deveria ser a dama de copas, como te recordarás. Se a procurares no baralho que recolhi nessa noite da mesa, não a encontrarás.Faz disso a primeira lição da tua nova vida.


FIM




Conto a incluir no meu próximo livro. Todos os direitos registados

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Carta ao meu amigo Luís

Nota prévia: Este texto de homenagem ao meu amigo Luís, foi escrito numa profunda tristeza, com a minha alma a escorrer dos dedos e o coração em lágrimas.
É o meu texto mais lido em qualquer blog, site, ou perfil onde o coloque.

Tal facto leva-me a concluir que a escrita quando verdadeira se impõe por si só, e que a amizade continua a ser o mais belo sentimento entre os homens. Ao meu grande amigo desaparecido eu ergo a minha taça, a vós que tributais o meu sentir, eu agradeço profundamente emocionado.



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Guimarães, 20 de Maio de 2007

Amigo Luís, despedimo-nos ontem do teu corpo, abraçamos, beijamos e sentimos agora a tua alma. Eram cinco da tarde, ontem como hoje que te escrevo, quando te acompanhamos ao sitio onde poucos, no futuro te visitarão, mas isso de que importa Luís...

A tua alma, estava no Bar do Tio Álvaro, passava pouco das seis. Ele, generoso, como lhe é habitual, serviu-te a cerveja do costume no copo de sempre. Bebemos contigo. Os amigos que tu sabes...Os que jogaram à bola contigo no esquecido "Adelino Ribeiro", que também partiu novo e aqueles que te retribuiram sempre o passe na conversa entretida do dia a dia.

Nesse campo Luís, aquele onde quem te conhecia ria generoso do teu riso oferecido, tu eras o capitão de equipa, o amigo de todas as horas, mesmo daquelas que o tempo não conseguia marcar.

O teu coração, tinha a largura do ombro largo que desviava os adversários da bola quando éramos miúdos e o lado direito do campo te pertencia. Éramos uns miúdos Luís, quando tu já eras um Homem!

Tínhamos a mesma idade, mas tu já eras um Homem.Aquele para quem a família era o bem mais precioso e que em boa hora cresceu contigo.

O mesmo que foste sempre pela vida fora e a vida decidiu, por estes dias, marcar-te um último encontro, já não num campo de saibro a cal marcado, mas num prado etéreo onde hoje, tenho a certeza jogas descalço com os anjos.

Estou a chorar Luís, mas não ligues, é porque os meus olhos são os lagos onde os peixes entretidos pescam os momentos bons que passaste com o teu filho e os guardam serenos numa memória de água e estrelas.

Estava lá muita gente para se despedir de ti, sabes, emocionados como estou agora. Com o teu corpo que foi a sepultar, deixamos lá todos um bom pedaço de nós, aquele, que no fundo sempre te pertenceu, porque nos davamos com facilidade à tua gargalhada com braços largos, tão largos como a tua alma que agora regamos, neste jardim de afectos, onde só têm lugar para crescer as almas puras como a tua.

Não pagamos às carpideiras, como achamos que tu gostarias que fizessemos, mas o sorriso, anatomicamente impossível de disfarçar do teu amigo "bife", foi a melhor paga que todos tivemos e confortou, nos que te amavam, a perda.

Queria dizer-te, antes de terminar esta carta, que te recordaremos sempre e para sempre, que o "Tufa" criou raízes em nós, que sempre que as manhãs pedirem licença à noite para acordar, tu estarás sorrindo nos raios de sol, mesmo que ele não esteja, mesmo que sejam de chuva as manhãs da nossa memória.

Marcamos encontro até ao dia em que a juíza-árbitro nos juntar para uma última partida, a dos que te amam com os que te querem, para sempre.

O teu amigo Zé Ilídio em nome de todos

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Grupo Surrealista de Barcelos

Um excelente trabalho de reportagem, feito na minha cidade natal, sobre um Grupo muito activo e muito malandro...
Gente que vive à margem das convenções e que tem como morada a palavra, a pintura e outras artes...
Vale a pena espreitar
http://www.youtube.com/watch?v=gXfmnabDjYA

domingo, 9 de setembro de 2007

Conto: O pescador que tocava harmónica para os peixes



Esta é uma daquelas histórias de narrador participante, uma vez que a vou contar, tal como a senti e o povo conta na Vila de Fão.
Esta é a história de Néu Caniço, pescador desde o dia em que nasceu. Tão pescador como seu pai, seu tio e seu avô o foram.
Pescador de todos os dias, menos aqueles em que o mar não recebe visitas, que nesses muitos deixaram as famílias a chorar, e viram a terra recolher em urnas pobres, seus corpos inchados de água.
Velho Néu, quando o conheci, somava sessenta e poucos anos, tantos quantos os de pescador, que dizem, sua mãe o teve em noite estrelada e boa de pesca, a bordo do Srª da Bonança, ali perto de um rochedo que se avista de terra, a “Pena” e que faz parte de um conjunto conhecido como “Cavalos de Fão”.
Quando as gaivotas ficavam em terra, o pescador dividia os beiços entre um cerveja gelada e a sua harmónica, sentado no banco de pedra de sempre, costas apoiadas na parede de madeira do Bar do Sérgio, ou Fôjo, como é conhecido.
Tocava como ninguém.Parecia que a sua alma espreitava em cada compartimento do instrumento, para logo penetrar matreira nos ouvidos de quem parava para o escutar, de quem, como eu, se sentava próximo para sentir o lamento melodioso do mar, que aquele homem bom trazia também nos olhos.
As rugas, essas, tinha-as bem marcadas no rosto, espécie de vagas cavadas, uma por cada dia sofrido de faina; muitas…
Na boca um cigarro enrolado, muitas vezes empurrado com a língua para um canto, como se de um farol aceso se tratasse, e que rodava sobre o horizonte assinalando a neblina que lhe saía dos pulmões.
Velho Caniço tinha sempre histórias para contar, mas de todas, e qual delas a mais sentida, uma fazia as minhas delícias e era assunto rerrente na voz rouca do pescador. Começava sempre assim:
- Menino, já te contei daquela vez em que um “Mero” se me cravou na linha e puxou o meu barco á volta da Pena durante mais de meia hora?
Respondia-lhe sempre que não.
O Mero, um dos troféus de pesca mais cobiçados, é um peixe que pode atingir comprimento e peso consideráveis. Difícil de apanhar, este verdadeiro senhor dos mares, era o personagem principal da história do velho lobo, que azedava, cada vez que os mais novos, convencidos de que se tratava de mais uma “peta” de pescador, riam desatados, facto que o irritava profundamente, a ponto de harmónica ao bolso levantar amarras e zarpar para outros “portos”.
Um dia encontramo-nos em alto mar. Tenho por hábito mergulhar na “Pena” para fazer caça submarina, uma vez que o rochedo está só a uma milha e meia da costa, e o peixe aí sempre foi abundante. Não reparei, no entanto, que o barco que avistei ancorado a uma dezena de metros era o velho Srª da Bonança, e dentro dele o meu amigo dava linha ao tempo.
Equipei-me a rigor e tombei de costas sobre as águas límpidas daquele lugar.
De apneia em apneia, fui arpoando alguns exemplares, que por esses tempos, o meu fôlego era bem melhor que aquele que tenho hoje, e de mim, muitas vezes se riem os peixes…
A determinada altura, levado pela corrente, cheguei perto do barco vizinho. Comecei por avistar a âncora presa na areia, logo depois o casco por cima de mim e uma linha de pesca a ser recolhida, chumbeira pesada e anzol solto nas águas.
Mais um que fugiu, pensei.
Por cortesia, emergi para dar os bons dias ao colega no barco. Logo que saí do silêncio profundo das águas, um som familiar entrou nos meus ouvidos, ainda à procura do estampido libertador da pressão. A harmónica de Néu Caniço soltava a mais bela melodia que me foi dada ouvir a partir da boca da sua alma.
Era uma música suave, apaixonada, longe das melodias chorosas que o marujo costumava tocar em terra, e que no momento em que soltei o capuz do fato de mergulho, se tornou cristalina como as águas.
- Bom dia! exclamei surpreso.
- Bom dia menino, por aqui?
-.É verdade, disse eu , apoiando-me na mão calejada que me ofereceu para subir a bordo.
-.Não viu por aí o meu amigo Mero?
-.Não. Respondi, como sempre respondo quando me pergunta se conheço a história do fugidio peixe.
Ficamos por ali os dois um bom pedaço, enrolando conversas e cigarros entretidos, que a mim me sabiam a sal e ao velho ao mesmo de sempre, “farolando” o tempo.
Despedi-me que a maré começava a subir e uma fome sorrateira parecia pedir uma sandes de presunto no Fôjo e uma cervejola a estalar.
- Se vires esse grande malandro, diz-lhe que está próximo o dia em que o apanharei na linha.
- Pode ficar descansado. Respondi-lhe mergulhando no som da sua harmónica, que tocava novamente a encantadora melodia.
Quando estava a chegar perto da minha embarcação, entre umas algas, a poucos metros de mim, avistei uns olhos como nunca tinha visto em anos de mergulho: grandes, numa cabeça gigantesca, logo abaixo uns lábios grossos, de onde saiu uma bolha de ar que escapou em zig-zag até à superfície.
O peixe parecia bem menos assustado que eu, mostrou-me lento o seu comprido dorso e desapareceu num golpe decidido de barbatana.
Fiquei mais pesado que o lastro que trazia à cinta. Faltou-me até comprimento na barbatana para chegar á superfície. Ansiava por contar a Néu Caniço o meu encontro com o seu Mero.
Logo que soprei a água do tubo à tona, procurei a embarcação do marujo com os olhos salgados, não sei se de água se de vontade quase cega de partilha, mas já não estava. Tinha soltado amarras e nem o horizonte me trouxe a sua companhia.
Rumei a terra com uma ansiedade a substituir a fome. Na minha cabeça a visão ainda nítida daquele soberbo exemplar, a soltar senhorial a sua barbatana nas águas, entre algas e a minha incontida surpresa.
Na noite desse mesmo dia, chegado ao Fôjo, entrado na porta levantei os olhos sobre os presentes à procura do meu amigo. Perguntei ao Sérgio se o havia visto.Respondeu-me que não lhe punha olhos e ouvidos em cima desde que saiu para a pesca nessa manhã.
Confesso que fiquei um pouco preocupado, mas decidi sentar-me numa mesa do salão decorado com madeiras gastas de navios e motivos do mar. Sérgio de viola nas mãos soltava os primeiros acordes para os turistas, que naquela altura do ano eram frequentadores daquele sítio especial, místico até…
Da sua boca os primeiros versos do poema de Pedro Homem de Melo:
- Era um rapaz da camisola verde – negra madeixa ao vento, boina maruja ao lado…
Regressei a casa, com a letra no ouvido, abri a porta um pouco desajeitado devido à cerveja bebida com sede, deitei-me na cama e sonhei. Toda a noite.
No dia seguinte, calção posto rumei ao rio, porta de saída para o mar, ali bem perto do Fôjo, para me estender na areia e ler um pouco.
Estranhei uma azáfama que trazia gritos de mulher misturados e passos miudinhos de criança, atravessando a estrada, lado para lado com a minha admiração, o meu espanto, que em breve se transformaria em preocupação.
- Ainda não sabes? Perguntou o Sérgio, voz de pescador, “fangueiro” de gema.
- Não sei o quê?, respondi.
- O barco de Néu Caniço foi encontrado ancorado na Pena, a Polícia Marítima rebocou-o e está a trazê-lo para cá.
Os homens de farda azul-marinho chegaram passado um instante. As pessoas que entretanto se tinham juntado num burburinho de especulação, levantaram poeira do chão precipitando-se para junto da água. Os olhos acotovelavam-se prenunciando a tragédia…
Assim que o Srª da Bonança encalhou na areia, mulheres, homens, crianças entraram rio adentro. Ouvi de longe:
- Não está o velho, está cá só um peixe enorme.
Ocupando quase todo o barco, o maravilhoso Mero que eu tinha visto no dia anterior. Olhos grandes, cabeça gigantesca, num dorso que metia respeito. Junto a ele, quase nos lábios esverdeados do bicho, a harmónica gasta de Néu.
O velho pescador que me encantava no som da sua alma e suas histórias de água e estrelas nunca mais apareceu, rezaram-lhe missa e a tragédia abateu-se sobre a vila de Fão.
Morreu afogado. Assim pensam todos.
Todos, menos eu.
Quando mergulho na Pena, duas ou três vezes por ano, velho Néu Caniço sempre aparece entre as pedras, olhos gigantes de mar solto para me cumprimentar, levantando a sua mão calejada, como que dizendo:
-Tudo bem, menino?
Para logo desaparecer num golpe decidido de barbatana.
É o meu segredo, não contem a ninguém, que não iriam acreditar.


FIM


Nota: Este conto pertence ao meu próximo livro a editar brevemente.

Todos os direitos se encontram registados

Conto: Beatriz e o espelho mágico



à minha filha Beatriz



Beatriz Olhitos de Azeitona.
Tinha outro nome a pequena, mas o pai, desde que Beatriz nascera, que gostava de fazer piada com a sua silhueta morena, de cabelos nocturnos, num rosto onde brotavam em luz, dois olhos redonditos, como se de pequenas azeitonas se tratassem.
Quem não gostava mesmo nada da graçola era a “olhitos”. Agora, que tinha completado 13 anos, feitos no início desse mês de Dezembro, achava que tais nomes não eram nada elegantes para uma rapariga como ela, senhora dos seus domínios, dos armários abarrotados de vestidos, dos acessórios e perfumes, dos seus livros… mundo de fantasia onde entrava horas a fio, vestindo-se muitas vezes a rigor para desempenhar o papel das suas personagens favoritas.
Não raras vezes a mãe deu com ela teatral, a dirimir argumentos com o bengaleiro, vestido o infame traidor com o casaco de fato do pai, e o chapéu de palhinha que o avô trouxera das férias no Brasil.
Um dia, em que a casa se encheu de uma azafama que cheirava a mexidos e rabanadas envolvidos em canela; de avós “discutindo receitas”, que uma fazia com água e a outra demolhava em leite…que uma punha mel e a outra limão…, a morena, já um pouco ansiosa por provar as iguarias, gritou: - Quando é que se comem os doces e chega o Tio Bernardino?
Tio Bernardino era o mais excêntrico e fantástico dos tios. Passou a maior parte da sua vida em África, mas estranhamente não tinha em sua casa nenhuma cabeça de Leão empalhada. Nem sequer uma pele de jibóia, coisa comum em muitos, que as trouxeram como troféus de caçadas inimagináveis, e que da boca do Tio, Beatriz nunca ouvira contar, ou haveria, algum dia que fosse, escutar.
A sua casa tinha objectos bem mais interessantes. Os livros estavam por todo o lado: arrumados, desarrumados, empilhados, abertos, fechados…depois, uma infindável variedade de objectos: estátuas, estatuetas, amuletos, máscaras esculpidas em madeira, objectos de uso quotidiano das tribos africanas, pinças, lupas, canivetes, colecções de tudo o que se pudesse imaginar.
A de borboletas era fantástica. Não estavam as extraordinárias e coloridas criaturas espetadas em alfinetes sob superfície mole, não! Para cada uma, o dedicado senhor criara um ambiente minúsculo, em caixas de vidro, parecendo que a vida efémera daqueles seres, havia sido eternizada, pois podiam ser vistas nas mais variadas posições: poisadas num ramo, flor ou pequena pedra, alimentando-se ou apenas mostrando toda a sua beleza.
Beatriz adorava o tio-avô.
Tinha sido ele quem lhe oferecera a maior parte dos livros que tinha. Mil e uma histórias mirabolantes, algumas escritas pelo próprio aventureiro ao longo da sua vida; feita de viagens, do conhecimento da vida de tribos, povos, pessoas. Reis em carne e osso.
O escritor, tinha durante quarenta anos, escrito e publicado dezenas de contos, histórias, relatos de viagem, monografias, um romance até.
Era o seu ídolo.Ansiava pela hora em que as dobradiças do portão anunciariam a sua chegada; bonacheirão, embrulho debaixo do braço, pronto a soltar uma sonora gargalhada, daquelas que parecem ter pernas e chegam a todo o lado.
E chegou.
Chegou quando o bacalhau e as batatas para a ceia de Natal, caíram redondos no escoador, um segundo apenas antes da avó “Quinhas” mostrar os seus dentes com coroa de ouro, gritando:
-Prá mesaaaa!
Olhos de azeitona crescida correu para ele, abraçou-o pela cintura, cabeça encostada à sua proeminente barriga.
-Vieste Tio!
-Claro que sim, princesa. Disse o tio, encontrando sítio para colocar um volumoso, mas estreito embrulho, que trazia debaixo do braço.
Por este nome não se importava Beatriz de ser chamada. Era como se sentia, quando as mãos, apesar de tudo delicadas daquela pesada figura, lhe acariciavam os cabelos, quando a sua barba grisalha lhe picava o rosto, num beijo alegre e solto.
-Podia lá eu perder a Ceia de Natal, confeccionada pela minha bela irmã…
A cozinheira corou num sorriso brilhante, disfarçando o mesmo embaraço que tinha em menina, quando os rapazes lhe atiravam piropos no caminho de casa, bilha do leite apertada no peito, lenço na cabeça segurando os negros e longos cabelos.
A mesa de Natal era um regalo, e não era só porque estava posta a melhor loiça e os copos altos que a avó guardava durante o resto do ano como relíquia, no louceiro fechado da sala. Era porque as iguarias disputavam entre si o privilégio de serem as primeiras a ser provadas.
Misturavam-se no ar os cheiros, especiais e saudosos, que naquele dia do ano traziam todos pendurados por uma sapatada da avó, quando alguém furava a barreira de mulheres na cozinha e depenicava à socapa as delícias.
Os pais de Beatriz a um lado da mesa, mais os avós maternos. Do outro, os paternos e tia Lola, irmã solteira do pai. Nas pontas da mesa, olhos nos olhos, à distância da ternura, a jovem e o tio, de história sempre pronta, que encontrava para contar nas coisas mais triviais: na presença de um objecto, nas palavras de alguém, que logo fazia suas, dizendo:
- Não te esqueças do que vais dizer…
A refeição foi uma alegria. As gargalhadas afinavam o tom pelo diapasão de Bernardino, homem que envolvia a plateia a uma só voz, e cuja assombrosa memória trazia sempre no discurso, uma história esquecida de cada um dos presentes, uma curiosidade, que a todos agradava, mais os embaraçados, que no fim, de bochecha corada, riam na gargalhada de todos.
Não faltava nada ali. Era pelo menos isso que pensava a jovem, cativada no cheiro adocicado do cachimbo africano, no aroma a café que se espalhava através dele no ar; no ar satisfeito do homem de quem tanto gostava; responsável pelo prazer que tinha na leitura, pela sua constante fantasia, pela sua alma cheia de aventuras e personagens principais.
Era verdadeiramente, o seu herói.
Um pouco antes da meia-noite, quando a lareira precisou de mais umas canhotas, o atiçado escritor, aproveitando a deixa, sentou-se na velha cadeira de baloiço da avó, fazendo festas ao lume que começava a crepitar na madeira seca e disse, para os que já envolvidos nos seus gestos, se sentavam apressados à volta do fogo:
- Vou contar-vos hoje, noite de Natal, a história triste da princesa “Nimé”, tal como aconteceu num tempo distante e a sua memória passou de pai para filho até aos dias de hoje.
E começou a contar, como se lesse o texto, no tele-ponto dos olhos-azeitona de Beatriz, cujo brilho concorria com aquele que vinha da fogueira, extasiada por cada palavra rouca saída da voz do tio.
- Há muito, muito tempo, no interior da selva africana, uns caçadores de uma tribo importante, fizeram um achado que mudaria para sempre a história do seu povo.
Encontraram no mato, inexplicavelmente, uma criança de raça branca, com poucos meses de idade, sem qualquer vestuário, deitada numa cama de folhas, não havendo por perto qualquer vestígio humano ou objecto que a identificasse.
Levaram-na para a aldeia e o Rei ordenou que fosse entregue aos cuidados de uma ama, que fosse educada como eram os filhos da tribo.
Baptizou-a com o nome de “Nimé”, que significava “criança perdida”.
Nimé, cresceu feliz no seio daquela sociedade. É certo que era de raça branca, mas isso quase não se notava, uma vez que a sua pele era morena, os seus cabelos negros e os olhos dum verde profundo retirado ao verde das Árvores.
Aprendeu a língua, as histórias antigas, aprendeu a contar histórias que arrancavam sorrisos aos mais velhos, porque tinha uma imaginação sem limites, porque se encantava com os segredos da floresta e parecia saber escutar e ler os seus sinais.
Aos treze anos era uma bela jovem, que o rei tinha adoptado como uma filha predilecta, vivendo lado a lado com os seus e esposa.
Havia, naqueles tempos uma tribo rival que ansiava por tomar e subjugar o seu povo, mas a sua coragem e liderança aliada à valentia dos guerreiros, sempre travou as investidas dos que viviam do outro lado do rio grande.
Os sucessivos falhanços levaram os invasores a recorrer a outras estratégias.
Procuraram na floresta o feiticeiro Salii, homem gigante e medonho, que vivia numa sombria gruta e cuja magia era respeitada e temida por todos, pedindo-lhe a solução para aniquilar o povo vizinho.
Salii lançou ossos e pedras pelo chão, queimou plantas de cheiro intenso, matou um animal com um golpe sangrado e guinchou ele próprio como um porco bravo. Atingiu êxtases alucinado, revolveu os olhos e disse com voz do outro mundo:
- Se quereis matar o rei, tirai-lhe Nimé.
Os emissários regressaram a casa com um espelho colocado num caixilho árabe, com ordem do feiticeiro para que o fizessem chegar à princesa adoptiva do Rei e que esperassem até ao momento em que esta completasse 18 anos. Aí, haveriam de conhecer a força da sua magia e do seu poder…
Assim fizeram, enviaram uma comitiva real, levando as boas intenções do povo do outro lado e a esperança de dias melhores, de coexistência pacífica, fazendo a oferta de vários presentes em prova de boa fé, entre os quais, o espelho que viria a causar a tragédia de todo uma sociedade tribal.
Nimé, não lhe resistiu. Tinha já passado longas tardes a apreciar a sua fugidia figura nas águas do rio, mas nunca se vira como até ali, na mais pura nitidez, naquele objecto mágico, que parecia ter vida dentro dele e revelava todos os seus encantos.
O Rei vivia feliz, cada dia mais encantado pela beleza daquela criança perdida que um dia os deuses lhe deram. Encantado pelos seus dons, pela sua serenidade, como se ela representasse a esperança de todo um povo, através das enormes qualidades que possuía.
Mas um dia a tragédia aconteceu, da mesma forma que apareceu do nada Nimé desapareceu sem deixar rastro. No seu quarto nenhum sinal, nenhuma prova de rapto, nada.
Apenas um estranho facto. O espelho brilhante que a jovem tanto amava ficou negro como carvão. Não reflectia nenhuma imagem, tinha-se tornado escuro como a noite.
Ninguém soube mais nada da princesa. O território foi atingido por calamidades naturais, que devastaram as culturas e mataram os animais. A fome tomou conta de todos, a fraqueza fez a vitória dos invasores.
No dia trágico em que as aldeias foram saqueadas e queimadas, na madrugada desse dia, o Rei acercou-se do rio. Levava debaixo do braço aquele espelho que lhe dilacerava o coração.
Olhou o rio que corria sempre diferente, as águas revoltas e lançou num dos últimos gestos decididos que fez naquele dia o espelho para dentro dele, chorando…
Ficaram só alguns para contar de geração em geração a tragédia que se abateu sobre aquela civilização florescente depois da bárbara investida.
Diz a lenda, que um dia Nimé ressurgirá das águas para curar as feridas de todos os que sofrem, com palavras de amor, de esperança. Que muitos a seguirão no caminho da paz e da fraternidade universal, porque a sua mensagem será de amor.

FIM.

As palmas ecoaram na sala, rápidas. Ninguém havia dito uma só palavra enquanto Bernardino contou a história. O fogo na lareira quase se apagou e ninguém deu por isso.Beatriz estava encantada com a história a um mesmo tempo tão bela e tão triste que o tio contara. Estava prestes a dar-lhe um abraço, quando este levantou um dos seus dedos finos e disse:
-Ah, já me esquecia…trouxe uma prenda para a minha bela sobrinha que há dias fez anos…Procurou com os olhos em redor o local onde havia deixado o embrulho que trouxera quando chegou a casa e encontrou-o, dando-o a Beatriz cujos olhos faiscavam, ansiosa por descobrir o conteúdo do estranho pacote.
Rasgou o papel de embrulho em dois tempos. Surpresa! Um espelho estava agora nas suas mãos, caixilho árabe dourado, vidro escuro como breu.
Não podia acreditar, o espelho de Nimé.
Correu a abraçar o tio, chorando de felicidade. Os presentes riram de tamanha brincadeira de Bernardino, dizendo-lhe que só ele para contar estas histórias, fazer estas surpresas, tão cheias de encanto.
O escritor sorriu. Colocou na cabeça o chapéu e despediu-se que se fazia tarde.

Beatriz cresceu.
Não há mais nenhum espelho no seu quarto, que não aquele que o tio-avô lhe ofereceu no natal de há 25 anos. Nele se vê como mulher, nele se olha por dentro da sua alma. É a única que o consegue fazer.
O dia de hoje é especial para si.
Olha-se mais uma vez no espelho, ajeita o colarinho da sua blusa branca, toca com os dedos a sua pele morena do rosto, afasta uma madeixa rebelde do ombro. Sorri e sai.
Em cima da mesa um jornal.
Na primeira página, a notícia do momento:
BEATRIZ SALVADOR RECEBE HOJE O PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA
Primeira mulher portuguesa a receber o prémio Nobel, a segunda nas letras, depois do escritor José Saramago ter recebido igual distinção há precisamente trinta anos atrás.
O Comité Nobel achou por bem agraciar a portuguesa, autora de uma obra impar na literatura, reconhecendo-lhe a sua enorme generosidade pelo uso da palavra, na luta contra a exclusão, o racismo e todas as formas de segregação racial.
Na altura em que recebeu a Notícia, Beatriz Salvador, ou “Olhitos de Azeitona”, como os amigos carinhosamente lhe chamam, de 38 anos e que escreve desde os treze, encontrava-se a jardinar na casa que foi pertença em vida do seu tio-avô, o escritor Bernardino Salvador, e que este lhe legou com todo o seu espólio pessoal e literário, aquando da sua morte, no passado ano, com 98 anos de idade.
Questionada sobre o significado do prémio, a ilustre escritora respondeu:
- Um espelho d´água.



Nota: Este conto pertence ao meu próximo livro a saír brevemente.
Todos os direitos registados

Conto: Susana só



Abriu a pesada porta da garagem e a luz solar iluminou a um canto a velha bicicleta que lhe passeou a adolescência, desde o dia do seu 12º aniversário, oferta do pai.
Cinco anos e uns quantos meses passaram desde esse dia em que, Susana, extasiada se lançou vereda abaixo disposta a conquistar a estrada, mas que a traiçoeira areia, junto à casa da Mariquinhas, tratou de por um ponto final à aventura, pelo menos nessa tarde fatidica, marcada a tintura e lágrimas.
Agora que a entrada na Universidade era certa e as férias começavam, sentiu vontade de montar na garupa 24 e partir de novo à aventura, mesmo porque as mazelas antigas eram já só memórias cicatrizadas.
Os shorts curtos e o top rosa inundado pelos seus caracois fartos eram tudo o que precisava para se sentir livre.
Pedalou distraída pela velha estrada que noutros tempos aturou o ranger das rodas debroadas a aço ferrugento da carroça do zé moleiro, disposta a fazer o caminho que a levaria à cascata do poeta.
Pelo caminho bebeu os cheiros quentes da terra e colheu flores coloridas que guardou no cesto lilás da sua velha bicicleta da infância. Estava feliz, despreocupada, como se tudo no mundo fosse belo e a sua vida só agora começasse.
Chegada ao destino, apeou com facilidade da bicicleta de selim subido, cuja marca estava tingida a suor no short delicado que trazia. Achou piada aquele triangulo esculpido sobre a sua silhueta de menina-mulher e instintivamente a sua mão delicada tocou o seu sexo num arrepio que pediu licença à boca para sair, num gemido surdo que quase espantou os passaros...
Estava excitada e como o olhar em redor trazia só o eco pingante da água da cascata, procurou com o desejo afiado, uma pedra romba para se sentar, ali bem próximo da água.
A sua mão, húmida nos dedos da humidade quente que exalava da sua delicada vagina, percorreu com ardor a entrada da sua pequena e depilada gruta, em movimentos cadenciados e de carícias feitos. Desceu o calção com sensualidade e a pedra quente gemeu também.
Não sabia bem dizer há quanto tempo estava ali perdida naqueles movimentos, nem o sabiam dizer os seus pequenos seios de bicos marmóreos, grandes o suficiente para sentirem a brisa acaricia-los e envolvê-los.
Num repente, na nesga de um olhar perdido pensou ver um vulto por detrás de um arbusto. Não se assustou porém o suficiente para estremecer ou perder a compostura, como se tal fôsse possível na candura agitada que toda ela exalava em perfeita comunhão com a natureza que lhe conhecia o nome.
Susana ficou ainda mais excitada com a possibilidade de estar a ser observada. Levantou-se delicadamente e a pretexto de preparar um banho relaxante nas águas cálidas da lagoa, não deixou de reparar pelo canto do olho, agora mais claramente, que um jovem rapaz, em movimentos frenéticos de mão, dava largas a um desejo que o consumia e que envolvia em comunhão o folhedo, o que quase a fez rir e estragar tudo...Entrou na água sem que os peixes dessem por ela, despida de medos, receios. A sua comunhão com a natureza era perfeita, como se pertencesse ali e dali nunca tivesse saído, sob pena de o quadro perder todo o equilibrio, toda a grandeza das coisas simples.
Viu, pelos olhos dos peixes, o secreto amigo segurar na cintura magra um par de calças fugidias, atarefado , enquanto deslizava com aparente facilidade os pés descalços pela íngreme escarpa. Ter-se-ía assustado?
-Olha! Onde vais, não precisas de fugir!
O rapaz parou subitamente.
O seu cabelo comprido tapava a espaços todo o sol e, sempre que isso acontecia, aquele rosto de feições afiadas brilhava com o brilho que tem o bronze, sereno agora como uma estátua, fitando com seus olhos redondos e verdejantes aquela que o interpelava.
- Chamo-me Jorge, refilou quase irritado, como garoto descoberto a meio da travessura.
- Susana Maria! respondeu-lhe a ágil nadadora, submergindo os ombros redondos no espelho d’água, deixando vísivel por um eterno segundo as roliças formas do seu rabo.
-Só Susana!
Como?.... perguntou, repelindo a água com os braços.
-Gosto mais de Susana.
-Seja...
Jorge era cigano. Cigano como todos os seus, dono da noite e do dia, das estradas empoeiradas sem regresso anunciado. Aprendera desde novo a linguagem surda da natureza, conhecia-lhe as formas em mutação e foi gerado, parido e agasalhado num ventre de urze e estrelas.
O que Jorge nunca vira nem sentira era o pulsar da natureza no corpo de uma mulher tão bela.
Sem reparar, deu por si de garganta seca, ali a dois passos da água, à distância quase impossível de um só passo que fôsse. hesitou o tempo suficiente para que a sua mão morena afastasse dos seus olhos –prado, uma madeixa de sol posto que ancorava em fio no lábio superior da sua boca desenhada.
- Estou acampado aqui perto! Disparou satisfeito com a mão em concha escorrendo uma nesga de água que sobrou do gôlo sôfrego.
- Não queres entrar? disse Susana esperançada...
- Talvez mais logo, pronunciou convicto, afastando-se em direcção a uns arbustos de onde colheu amoras rubras que juntou com rebeldia na fralda suja da camisa. Apontou-as com o indicador e o queixo, oferecendo-as a Susana, que deixava advinhar todos os seus encantos por debaixo da roupa molhada.
Ficaram ali, boca suja escorrendo o barulho da cascata, sorrindo pelos passaros.
Até que um assobio colocado, ondulando pelas pedras, os acordou daqueles momentos satisfeitos.
Era Juan quem se anunciava ao longe, pelo cheiro dos cães, pelo faro estuto dos passos, pelos galhos a pedir clemência.
-Tenho que ir! Preciso de ir! Disse com a voz presa na trela daquele assobio curto, como se a demora tivesse começado a contar no preciso momento em que a lingua se dobrou no palato.
-Encontramo-nos à noite aqui? inquiriu Susana, aumentando o volume da sua voz cândida à medida que Jorge se afastava.
A resposta não veio.
O jantar foi engolido entre duas notícias no telejornal e a boca ainda cheia de uma meia desculpa para o pai, desconfiado da filha e do vinho que Dona Emilia, a mãe, colocara na mesa.
-Já não se fazem filhos, nem vinho, como antigamente...
O caminho demorou pouco tempo a fazer. Foi correndo, que a noite estava estralada como nunca e a lua brilhava serena, deixando escapar aqui e ali um bocejo.
Susana era toda ela palpitação. Sentia correr o sangue nas veias, na tez queimada, no sexo apertado. Chegou à Cascata do Poeta toda ela aberta por dentro, ofegante de desejo.
Ficou à espera o tempo suficiente para ser surpreendida pelas mãos nuas, pelo tronco nú, pelo sexo ardente de Jorge, que a tomou pelos quadris, apertando-a para onde não havia lugar para escapar, nem memória.
O vestido de Susana caiu naturalmente, como se fôsse feito da mais pura seda fugidia. Por baixo nada, que a ideia do aperto, nem que suave, da malha contra o corpo, era suficiente como desculpa.
Jorge tomou-a, como se toma a água, bebendo-a e penetrando-a de uma vez só, de uma só golada.
A noite quente foi a única testemunha e a água da lagoa apadrinhou a união lavando os corpos extasiados à deriva.
No ar ficou a promessa de um novo encontro que nunca veio a acontecer.
A brisa levou o cheiro crú de Jorge, a poeira do caminho suspirou no reencontro das rodas de madeira das carroças com as pedras soltas do caminho, gravando sulcos, hieroglifos de uma história fugaz de amor.
Susana reencontrou mais tarde a terra que a viu partir, formada, casada e com filhos chilreando à sua volta.
Nesse verão a lagoa estava ainda mais bela que antes. As flores tomavam as margens, inundando-as. As duas filhas mais novas brincavam para além do olhar distante do mano velho, autoritário na paisagem. Dir-de-ía que a pedra onde repousava era uma espécie de pedestal para aquele Adonis moreno, que parecia recolher o tributo de ser o senhor daquele lugar. Desde sempre.
Susana acercou-se do seu rebento acariciando-lhe a testa e sorrindo pelos seus lábios.
- Tudo bem Jorge?
- Sim mãe. Contas-me outra vez aquela história que me contavas quando era pequeno... aquela do cigano que um dia resgatou das águas uma princesa encantada que lhe deu como prémio a terra e o céu...
-Só se fores tomar um banho que estás todo sujo.
-Só isso...
-Só. Respondeu Susana , vendo o seu filho mergulhar altivo para dentro do espelho.

FIM

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos tes olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007

Conto: Oficina da palavra


O letreiro, discreto e manuscrito, chamou a minha atenção ao passar pela rua dos artesãos. "Oficina da palavra - Consertos rápidos". A minha curiosidade não matou o gato, mas calcou-lhe o rabo sonolento no vão escuro das escadas...
Não refeito do susto, o felino quase apanha o eco do grito, o meu e o dele juntos, tal a velocidade com que subiu aquela dezena de degraus, à procura da festa compreensiva do dono, saltando-lhe para o colo.
Parecia que as mãos grossas e calejadas daquele homem por volta dos quarenta o aguardavam desde o preciso momento em que a sola do meu sapato gasto não encontrou só o degrau da escada.
Antes mesmo que eu pudesse articular um pedido de desculpas, já o bichano descia veloz até aos pés do dono, cuja mão estendida procurava a minha, atrasada.
-Fernando, ao seu dispor...
-José, muito prazer.
-Em que lhe posso ser útil?, perguntou aquele artesão de avental sujo, do alto de uma voz rouca, mas serena, amarelecida por um cigarro consumido que apagou sem pressas num cinzeiro de pedra sob a bancada.
-Vim pela curiosidade...
-Sente-se então, por favor. E dizendo isto apontou com o indicador uma cadeira de baloiço, onde me refastelei deliciado.
Tinha dali uma visão perfeita de toda a sala. Na bancada uma tábua de madeira estava prestes a ser talhada. Outras, ao alto, esperavam o mesmo destino sossegadas...O relógio de pé, tinha um compasso cansado, porém atarefado, parecendo não conseguir alcançar o tac seguinte em cada balanço do pêndulo e da minha cadeira...
Fechei os olhos.
Não sei quanto tempo dormi. O relógio estava parado ao fundo, marcando as cinco da tarde. Nem gato, nem homem, a sala estava vazia...Assim que me levantei, o meu pé voltou a calcar algo mais duro agora. Os meus olhos, escorregando-me pela cara, foram caír na placa de madeira tosca que estava a meus pés.
Esculpidos nela com mestria, os mais belos versos de um poema de amor. Li cada verso, cada palavra, cada letra com uma estranha familiaridade desconhecida...
Aquele poema só podia ter sido escrito por mim. O tema, o jogo de palavras, a rima, eram meus... Estava atordoado com tudo aquilo e reli...
Não tinha dúvidas, a escrita ali impressa, ali talhada a escopro e martelo, só podia ser minha e a própria assinatura no fundo não enganava:-Era a minha em cada letra.
Peguei naquele poema envernizado, mas curiosamente sem cheiro fresco, coloquei-o debaixo do braço e tacteei os degraus inversos, sem luz, nem gato...
Em casa, descobri o sitio ideal para o expor, pois aquele era um poema para expor, não para editar no Luso - Poemas, mas para expor como um quadro, uma obra de arte, que eu tinha a certeza, existia por si, tinha uma alma, um tempo que os varvitos da madeira guardavam só para si, insondáveis pela ciência dendocronológica.
Dormi aquela noite na sala, junto dele...
No dia seguinte, decidi voltar à oficina. Dobrei a esquina sôfrego de um agradecimento que me queimava a garganta, ansioso para o largar nas mãos daquele homem, do qual só sabia o nome: Fernando.
Subi os degraus, dois a dois, à procura daquela pessoa... Distraído, nem reparei que a simpática placa da porta já lá não estava, bem como as madeiras empilhadas, nem a bancada, nem as ferramentas...porém, no canto mais afastado da sala, o velho relógio marcava o tempo ritmado, agora, pulsante como um coração batendo, palpitando em cada movimento. Passei as minhas mãos pelas suas marcas, acariciei o vidro, encostei a minha face na sua e chorei a perda de alguém, que eu não tinha tido tempo de conhecer verdadeiramente...
Uma mão de mulher afagou os meus cabelos...dedos longos, finos e delicados como ponteiros. Secou as minhas lágrimas com um sopro quente de vida...encostou a costa da sua mão à minha boca que queria perguntar o mundo. Beijou os meus lábios, com uma madeixa loira do seu cabelo a acariciar o meu espanto, cada vez menor, cada vez mais comprometido. Fizemos amor.
Sandra é minha mulher agora. Casamos, tivemos filhos. Dois.
O rapaz gosta de trabalhar as madeiras, a rapariga escreve poemas...

FIM

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho2007

Conto: Memória de um sonho de voo



Os corpos caíram com um estampido seco na calçada, um atrás do outro, seguidos.

Ouviu-se um marulhar de gente a levantar os olhos e o queixo em direcção ao cimo do prédio onde já não estavam, só depois em direcção ao chão.

Os membros retorcidos de Pedro e Inês, abraçavam-se em sangue e outros líquidos corporais. Os gritos sucediam-se como aviso da fatalidade aos desprevenidos e os olhos das crianças que até esse momento brincavam, foram tapados com mãos trémulas de dor.

O beiral do telhado alto do prédio tinha os dedos dos transeuntes apontados, sinalizando o local da queda. Teriam caído? e que fariam nesse caso ali? Ter-se-iam suicidado!...?

Pedro e Inês conheciam-se desde sempre, mas foi numa segunda-feira de Março, exactamente dois anos antes daquele dia rubro, que os seus olhos se abraçaram sob a cumplicidade de um sol que cada um trazia a meias dentro de si e que se uniu escaldando a adolescência de ambos.

Quinze anos somavam naquele dia em que o cheiro das plantas se embrenhou com o dos seus corpos juvenis, perto da roda da azenha da velha ponte medieval, confundidos com o ranger das tábuas, cada um sentindo o rio passar dentro de si.

Inês era de uma beleza sem igual. Deus quando a criou, escondeu o molde, não fosse uma qualquer confusão dar azo a uma repetição da criação, estragando a originalidade das suas feições: O fino recorte dos lábios, os olhos rasgados numa pele macia e cândida, os ombros protegendo um busto suave onde dois generosos seios lembravam redondas laranjas.

Aquela deusa caminhava delicada nas suas formas esbeltas. Um rabo que de tão redondo dava novo sentido à circunferência, pernas compridas que começavam nuns pés de dedos meigos e terminavam no estreito delta da sua púbis. Costas direitas, assentes sobre quadris de sonho e uma lagoa ao fundo das mesmas, com uma ilhota a subir das águas; dois dedos abaixo, a linha do desejo dividia aquele corpo em dois gomos sumarentos.

A pele morena de Pedro contrastava com a brancura da sua amada. Os longos cabelos escuros, cada vez que se misturavam com os fios de oiro do de Inês, pareciam ganhar um brilho novo. Alto, porém de formas magras, com os dedos longos das mãos a terem a medida certa do braço da viola, que tocava como ninguém.

A música era só a segunda paixão depois de ter começado a namorar com a filha única de Faustino Arroja, comerciante de bacalhau, homem tão seco quanto o norueguês petisco, de um olhar soturno e tão afiado quanto a lâmina da guilhotina que o punha às postas.

O abastado negociante, logo que soube do namoro dos dois, barafustou e amaldiçoou aquela união, a meio de uma espanholada confeccionada por dona Helena, sua assustada mulher, que um dia arrancou a uma adolescência que não lhe pertencia, mas que dela se apropriou, engravidando-a na flor de uma meninice, a mesma de sua filha Inês, a quem agora negava o direito de amar.

Inês fugiu daquela mesa transformada em tribunal, levou nos pés os gritos do pai, acusadores, que a alma, essa ansiava pelo reencontro dos passos de Pedro, pelos acordes da sua viola, pela voz de veludo nos versos que fazia e a quem emprestava os dedos, acariciando cordas, fios de emoção dedilhados na mestria que se pode ter aos quinze anos.

Encontrou-o no lugar de sempre, caneta riscando o papel. Esboços de poemas acotovelando-se para conseguirem espaço na folha.

A sua musa acariciou-lhe os cabelos, envolveu-se braços nas pernas, cabeça descansada sobre os joelhos, fitando o seu amor, ternamente, sem falar…

Pedro, apesar da breve idade que tinha, era um inspirado e criativo músico, autor de letras já maduras, como que espantosamente sacadas a uma alma que já havia vivido antes, experimentado, numa outra dimensão, numa qualquer outra história de vida.

Não sabia muito bem como é que isso lhe acontecia, o que é certo é que cada vez que escrevia era como se o tempo parasse. Como se escrevesse num espaço em eterno fuso horário.

De todos os temas, o amor, era aquele que mais o entusiasmava, até porque a sua cumplicidade com Inês foi ganhando com o tempo contornos de paixão transbordante, que o trazia em constante inspiração criativa.

O que o poeta não sabia é que, durante quase dois anos, Inês havia sofrido na alma e no corpo as agruras causadas por um pai autoritário, que não poucas vezes havia recorrido à violência física, como punição por aquela paixão proibida, manchando de uma dor maior ainda, o desgosto e frustração que sentia.

Sofreu em silêncio, com uma mãe que com ela chorava, lágrimas de um sal cortante, que ardia na face, lágrimas pelo corpo todo.

Faustino Arroja não gostava de Pedro, pela mesma razão de ódio que tinha à sua mãe, com quem no passado manteve relação amorosa, e que o havia deixado pelas mesmas razões de mau carácter, que a vida aguçou e se evidenciavam no presente, na relação de quase escravatura que mantinha com os seus funcionários, com a família.

A mãe de Pedro ficou viúva anos mais tarde, do casamento que viu nascer o jovem, tinha este, onze anos de idade.
Regressando à terra de origem, procurou levar uma vida tranquila, trabalhando e educando o rapaz numa ternura de cumplicidade, de verdadeira compreensão. Eram como irmãos, mãe e filho.

Arroja estava decidido a não desistir daquele amor doentio; despeitado, nunca desistiu de reconquistar Maria Augusta, a quem as constantes investidas do comerciante causavam irritação e constrangimento.

Pedro teve noção daquilo que se passava, quando as manhãs deixaram de trazer o sorriso angelical de Inês, quando uns olhos belos se substituíram por outros, encovados, tristes.

O tirano e perturbado pai, chegou ao ridículo de vigiar cada passo da filha, de a encerrar no cárcere da sua própria casa, impedindo que esta se encontrasse com o seu amor, que trocasse uma só palavra que fosse e, chegou mesmo ao ponto extremo da agressão, quando socou violentamente Pedro, num dos cada vez mais raros encontros entre os dois apaixonados.

Nunca mais Pedro sorriu nos olhos de Inês, nunca mais aquela sereia se deu desprendida aos seus braços longos, nunca mais os dias foram iguais aos dias felizes, em que libertos se misturavam com a natureza, com as águas do rio que os viu nascer, numa melodia sempre nova, que Pedro retirava, mordendo o lábio, à viola que tinha dentro de si.

Sentiu que perdia a cada dia a sua amada, que esta anoitecia antes da hora e que o seu tempo, já não era o tempo fora do tempo, eterno fuso a fiar a sua escrita, a sua vontade de cantar o mundo, o amor, livre de tudo, de todas as barreiras.

A tristeza tomou conta de ambos, remeteu-os a uma solidão forçada. Já não se encontravam, trocavam mensagens escondidas no bolso salgado de Miguel, empregado do pai, fiel amigo e companheiro dos tempos da escola e da inocência, que ia e voltava com lágrimas em forma de carta e promessas de amor eterno.

Uma noite, em que o malévolo cangalheiro se deslocou ao Porto em negócios, encontraram-se furtivamente. Inês deslizou suavemente por uma janela sempre aberta na sua alma, deslizou delicada, vestido branco comprido que desprendia um corpo que parecia acontecer nas estrelas daquela noite, transparecendo solto no luar, anunciando um dia novo, um novo dia.

Fizeram amor, intensamente, como pode e deve ser o amor aos dezassete.
Fizeram-no livres, de tudo, de todos.
Fizeram-no!

Num último olhar, num beijo molhado que nunca foi de sal, antes mel, do mais doce mel. Olhos nos olhos, confiantes no dealbar de um novo poema, de uma canção a duas vozes, dueto de emoções partilhadas.

A manhã daquele dia de Março acordou com os dois amantes abraçados no topo do prédio, um pouco mais perto do céu, como dizia a canção de que gostavam.

A um passo só da libertação, como se a imortalidade lhes tivesse sido prometida à distância de um só passo.

E deram-no!

Confiantes e seguros. Mão na mão, olhos nos olhos, felizes.

…………………………………………………………………………………………………………………………………
Os sinos, pesarosos tocaram dentro de toda a gente, a história de Pedro e Inês chegou mais longe que os chorosos sinos.

Na capela mortuária duas urnas, duas, que assim o impuseram Maria Augusta e dona Helena, as mães numa dor sem fim na morte dos seus filhos, mas renascidas contra tudo, contra todos…

O serviço fúnebre foi longo e emocionado, o pároco, também ele moço novo ainda, lembrou aos presentes o quão efémera pode ser a vida e grande e imortal o amor, que Deus não deixaria por certo de acolher quem tão apaixonadamente se deu ao outro.

Quase no final, o amigo Miguel, companheiro muitas vezes da música e das palavras, aproximou-se do altar, fitou os presentes nos olhos, pelos olhos do seu amigo, cujo bolso ensanguentado das calças continha uma nota póstuma, para ser lida no dia do funeral, último desejo de Pedro.

Era um poema e Miguel disse-o assim:

Memória de um sonho de voo

Voamos sobre todas as casas
Eu e tu, naquela suave manhã
Não precisamos de bater asas
Nem amor foi palavra triste e vã

Os meus olhos eram teus
no último segundo de mim
E eram nossos os olhos meus
Na eternidade do doce fim

Os meus lábios nos teus colados
Traziam-te nos meus beijos dada
E eram nossos os poemas falados
Na suave ternura da boca beijada

Digo-te até já minha flor de lótus
Encontramo-nos onde tu sabes
Na distância sublime dos corpos
Para que te não fines nem acabes

A brisa levou-nos para nós
Na serenidade do voo breve
Já ninguém mais cala a voz
De quem arrisca e se atreve

Pedro, 21 de Março de 2007

FIM

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007