domingo, 9 de setembro de 2007

Conto: A culpa


Miguel crescera com a mesma rapidez com que as canas do canavial rompiam a terra, aí por alturas de Maio, quando a primavera já não precisava de se anunciar pelo assobio sincopado das andorinhas atarefadas dos beirais.

Ontem, de cueiros pelo quintal da avó, aparava ás árvores o tempo que os frutos por amadurecer clamavam, enfiado nos calções de ganga que o penduravam por umas alças à liberdade dos estendais.

Foi quase ontem, pela janela da sua alma que não sustentava paredes ao teto estrelado do seu quarto, que viu a noite sorrir-lhe nos olhos doces de Maria, entreabrindo-lhe as portadas de uma intimidade tão doce quanto o anseio dos frutos por cumprir nos ramos.

Foi quase homem nesse dia, aquele que lhe trouxe o cheiro das rosas por desabrochar, envolvido num outro que já pressentira antes, um cheiro de menina moça a subir pelo corpo e a ancorar amarras na boca, língua de areia que se deixa penetrar por um vocábulo de mar, onda que vai e vem na fogosa praia dos sentidos da adolescência

Hoje como ontem, Miguel não pede licença para entrar, quando as moçoilas da aldeia exalam seus cheiros.

A vida tinha os dias contados, um após outro, em contas de merceeiro, diga-se a verdade!

Miguel guardava o açúcar do lado do sol, o que irritava profundamente a José Anastácio, austero bigode a desfiar a superfície comercial que explorava, paredes- meias com o cabeleireiro de sua esposa, dava-se a criatura pelo nome de Bernardette.

Guardava-o lá, ao pé do sal, bem ao lado das rubras faces das damas que frequentavam a mercearia, escape do dia a dia penoso, servido pelas mãos do galante empregado como terapia.

O negócio corria de popa em popa.

Anastácio sabia do potencial do rapaz e depositava nele as mesmas expectativas que Bernardette e metade da população feminina de Lanços de Baixo. Saltar-lhe em cima!, – sejamos francos.

Miguel sabia disso.

Sabia que os dias se contavam em gramas, quilos; de sorrisos, de palavras como gemidos.

Sabia que a fruta amadurecia nos olhares trigueiros em tempo da colheita, cada vez que as damas empurravam o carrinho dos dias iguais no chão polido da Mercearia de Anastácio e os olhos deslizavam como bogalhos até se perderem no corpo atlético do belo moço que servia o tempo sem tempo, numa quase alquimia, que as trazia escorrendo em fio.

Um fio que embrulhava os desejos, os mesmos desejos desembrulhados nas cabeceiras das camas dos maridos que iam à caça, favor que o garboso rapaz fazia a quem procurava caçar os chifres – estranha semelhança com a vida real, pois o tiro que disparavam era sobre o próprio pé…

Bernardette era impossível de aturar. Cada vez que a chave na ignição pedia licença ao pé de chumbo de Anastácio para arrancar a carripana das compras à cidade, cada vez que o falso dobrar não dava em nada, já o pezinho matreiro e apressado da loira cabeleireira levava rolos nos pés para o disfarce comprometido.

Miguel era um rapaz generoso, tanto ouvia a sua voz fazer eco nas semi-virgens donzelas, como se via ao espelho narcísico, das doridas mazelas de mulheres feitas.

Feitas de truques e disfarces, para todas as ausências, mais aquelas que não eram sentidas., pelos anafados maridos, atarefados em refilar o tiro perdido…

Respiravam-se bons ares naquela mercearia sem preço ou contrapartidas, onde Miguel fazia contas de somar os afectos mais os carinhos dados e não subtraía nada nem pedia nada em troca.

Certo dia, porém aconteceu , aquela alma tão dada aos outros, perdeu-se de amores pela filha de um abastado negociante de gado, pessoa de um só olho, mirrado, mas que havia dado ao mundo, pelo menos se diz, através de sua bela mulher,( uma brasileira que lhe havia sido recomendada pelo primo, homem do ramo das padarias, por terras de Vera Cruz,) a mais deliciosa pérola

O pai não estava disposto a deixar colher a sua pérola, nem que fosse à lostra.

Miguel e Paula partiram com malas que não eram de cartão, levaram nelas o egoísmo da paixão e a pena das mulheres.

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Depois de alguns anos e muito trabalho pelo estrangeiro, constou-se pelos coçados bancos da Igreja da aldeia de Lanços de Baixo que o casal de apaixonados estava bem na vida, que o rapaz tinha tirado um curso de computadores.

Paula, assim se chamava a nossa pérola colhida, era uma mulher simples, mas belíssima. Entretinha os dias, sedando-os com a leveza do seu olhar e doces formas.

Os deuses comiam bagos abancados…

Porém, o sombrio destino, que nestas coisas anda sempre escondido, um dia bateu à porta com a doença. O casal quase nem tempo teve para perguntar quem era. Primeiro adoeceu Miguel, depois Paula, aquela ninfa de olhos verdes, cuja serenidade cheirava à terra molhada, cujos cabelos traziam anjos brincalhões; gravemente…

Algo os chamava, num período adiantado da maleita de que padeciam, a voltar à terra que os viu nascer, nem que fosse para aí contarem, em contas de mercearia, os dias sem tempo marcado para acontecer. Todos os que fossem possíveis.

Chegaram de carro.

Abriram as janelas das suas almas e quase não conseguiram suster um grito de dor. A Vila estava deserta. Havia um estranho silêncio por todo o lado, um rastro de abandono de desolação. Cacos e vidros por todo lado, nos olhos…

Com o espanto e a estupefacção como caminho, dirigiram-se na direcção da Mercearia de Anastácio, a velha mercearia que ali jazia irreconhecível. O barulho de uma porta a ranger trouxe consigo a desconfiança de uns passos com dificuldade em calçar a suja e degradada calçada.

Perguntaram o que tinha acontecido ao dono da loja, paredes- meias com o cabeleireiro destruído, homem de bigodes austeros a desfiar falsos arranques de carro. A resposta levou a única direcção de um dedo em riste, que apontou e desapareceu para a colina da Moura.

Era um edifício rectangular, com janelas opacas, pairando como uma nave espacial sobre a aldeia e a planície.
Á medida que se aproximavam, tiveram uma estranha sensação a percorrer-lhes a espinha, um arrepio de morte, outra que anda escondida, mas está em todo lado. E estava ali, tinham disso agora a certeza.

Na porta uma sigla: S A P D C S
Por baixo em letras pequenas, mas gigantes no significado:
Serviço Ambulatório para Doentes Com Sida de Lanços de Baixo

Entraram, pelo seu próprio pesadelo a dentro, como se entrassem na sua própria casa, na sua própria terra fria…

A um canto um velho. O bigode amarelecido tinha agarrado uma face magra por um fio, um fio de doença, um fio de solidão.

José Anastácio fitou os olhos de Miguel e Paula, fitou-os com um olhar meigo, bondoso, sereno como os Deuses gostam. Abriu o casaco, retirou, como por magia a mais reluzente e madura das maças, vermelhas, rubras de vida, de maturidade dando-a generoso a Miguel.

As paredes sem teto, com janelas agarradas daquela alma abriram-se e ouviram-se da sua boca ferida as últimas palavras:

- A culpa não foi tua.

FIM

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007

sábado, 8 de setembro de 2007

Conto: (A) traídos pelo Hi5 - Uma história (im) possível



Carla – 23 anos - sensual
Estado civil: digo-te depois
Orientação sexual: bissexual
Localidade: Braga
Date men, Date Women

Carla apresentou-se pelo nome.
Descobrira o Hi5 na coscuvilhice tosca que se esconde matreira, entre a necessidade de fazer o trabalho de história da faculdade e uma espécie de impeditivo súrúrú de gritinhos, gemidos sob disfarce, risinhos entre-pernas das coleguinhas de curso, boquiabertas no plasma repartido da sala cibernética.
Trazia-lhe o nome pendurado por um cursor. Agora que tinha aderido ao grupo: 56 amigos e amigas adicionados, 82 visitas ao perfil, achava-se capaz de arriscar:

Rui – 35 anos – sensual
Estado civil: comprometido
Orientação sexual: digo-te depois
Localidade: Braga
Date men, Date Women,
Make friends

Carla tinha uma relação com Pedro, 22 anos, aprendiz da vida, rapaz para duas únicas paixões: uma pelo fitness e tudo o que tivesse a ver com malhas justas no corpo e outra por carros.
Carla não sabia bem de qual menos gostava, se aquela que implicava Gillete após Gillete, um amontoado de pelos entupindo o chuveiro, se o escape livre do bólide a fazer as delicias do trolha, pendurado por um andaime ao desejo.
Tinha decidido escapar.
Fugiu por um fio de rato, à distância de um click, numa sala sem gritinhos. O único que ouvia era aquele que lhe dizia bem alto: - Escapa!
Escapou pela porta dos fundos da moleza do companheiro, no preciso momento em que o Gabriel Alves fazia uma aborrecida dissertação sobre os estádios ingleses. Pareceu-lhe, maliciosamente apropriado…
Encontraram-se num Hi-Bar de circunstância, Rui trazia na lapela a altivez de um homem experimentado, o cabelo loiro deixava um rasto fulvo nas damas que ardiam, olhares em Web-Cam. Carla ardia.
Ardia de um fogo de dentro, portais bem abertos de uma alma jovem, disposta a correr riscos, todos os necessários para ser feliz, hora não taxada do encontro consigo mesma.
Deixaram os livros pendurados à cabeceira da noite, que a hora não era disso. Fingiram, cada um o suficiente para se sentirem felizes um com o outro. Choraram lágrimas de sémen, refastelaram-se em incertas paisagens.
A tépida luz do dia trouxe à baila, na saia rodada daquela alma que se pensava livre, a esperança de um dia de pássaros, de animais que falassem.



Carla ardia, ardia perdida de um homem, que tardava e a consumia, nas horas sem fim à vista; nas fogueiras por apagar do desejo, por todos os rio mudos sem praia para desaguar, ao Sul de todos os Nortes.
Às vezes pensava para consigo própria, na doçura da idade, que tudo se resolveria, que a vida se encarregaria de a fazer feliz, que na ida e volta das vagas do tempo, sobraria a espuma dos dias felizes. Mas eram poucos…
Para Carla, a ideia de trair era uma ideia com ida e volta. Começava grande na frustração do dia a dia e, acabava pequena na erecção do companheiro, logo depois da novela.
Tinha traído o companheiro e lidava bem com isso.
Rui não lidava e também nunca quis ser toureiro, mas no fundo, no fundo sempre cravou farpas na relação que mantinha com Joana, seu par.


Impar foi o número que tirou Joana, também ela cybernauta, presença assídua no Hi5 nas ausências do marido, escape excitante pelo grupo, pelas fotos sensuais, pelos rapazes de pénis erecto na mão, mesmo que não fossem eles, mesmo que não sejam eles, que o desejo não tem rosto, mas é eléctrico.

Pedro, 22 anos –sensual
Estado civil: Comprometido
Orientação sexual: Digo-te depois
Localidade: Braga
Date Men, Date Women

A foto era explicita. Pedro fotografara-se do peito para baixo e o seu garbo, naquela perspectiva, inflamava qualquer greta.
Joana sentiu-se inflamada, tanto que não resistiu a passar a sua mão de dedos finos pelo triângulo rendado da sua leve tanga, a princípio com suavidade, depois num roçar que afastou tudo; o não pensar, o não se importar, o importar-se muito com o prazer.
Um rio barulhento…foz segura…
Marcaram encontro, para nunca mais, o sexo por obrigação do casamento e o cru fastio da ternura fingida. Foram padrinhos o Teatro e a poesia.

Joana, 32 anos – sensual
Estado civil: Comprometida
Orientação Sexual: Bissexual
Localidade: Braga
Date Men, Date Women

Segura era como se sentia, quando deixou que o roncar do cabrio falasse por si. Segura era como se sentia, quando o puxador da porta do carro a rasgou no meio da noite daquele dia, vestido negro e tudo, meias rendadas presas por um fio, um fio de desejo que a atravessou inteira, elástico desejo que a transportou.
Sentiu-se presa na mais doce das liberdades, rabo nu sobre as ervas, rolando por todos os dias encravados como unhas, todos os dias em que não conseguira ser verdadeiramente ela, mulher.
Da noite primeira daquele dia, ficou para Joana uma certeza, nem literatura nem esperteza, ela queria era ser puta, daquele dia e de todas as noites seguintes.
Puta que não se vende mas se dá. Puta sem sentido prejurativo. Puta sem sentido nenhum…

Carla não.
Não quer ser, agora que descobriu de novo o prazer, com um homem mais velho, a menina dos caprichos hormonais, quer conhecer mais…
Quer conhecer para além daquilo que o seu amante nunca realizou com a mulher, quer conhecer o cheiro que tem uma rosa desabrochada, o sabor que tem uma mulher quando amada.
Conhece a vida por dentro e, dentro dela, a adolescência foi ontem quase, povoada de memórias excitantes, do beijo com o primo Fredo às carícias com a amiga Matilde no celeiro do pai, primeiro orgasmo que a marcou com o ferro incandescente do erotismo.
Carla acordou com o seu novo amigo, adicionar à relação uma mulher, ou um casal.
O encontro teria lugar discreto e aconteceu.

Aconteceu pelo hi5 que todos partilhavam, à distância sustentável de um clicK.
Carla adicionou Joana. Adicionou-a com saliva à sua libido, deixou-se penetrar pelo desejo, deixou que o desejo de conhecer alguém amadurecido se cumprisse.
Joana trouxe o amante Pedro para a noite das surpresas. A noite em que quatro estranhos conhecidos deram de caras com uma espécie de destino que os ligou.
Ligou-os com rendas das mulheres, num frenesim de emoções sem par. Ninguém sabia quem amava nem quem traía, nem sequer isso era importante; excitante era o termo…

Mantiveram todos quatro, uma relação que durou um tempo sem tempo. Episódio após episódio, numa novela da vida real, big brother explicito e carnal a que ninguém assistiu de fora.
As vontades e anseios de cada um, fundiram-se na proporcional medida em que não existe proporcionalidade nenhuma no desejo sem limites, existe prazer e esse, todos o conheciam, até um dia…

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Esse dia foi uma longa noite. A noite em que cada um, mesmo com os olhos bem abertos, não viu para além daquilo que o prazer, perversamente forjou
Carla chorou por ela dentro, a gravidez que lhe aconteceu por computador, por cada um dos responsáveis, por cada uma das pen introduzidas, sem saber qual transportou o vírus, mas não chorou a partida do companheiro. Pedro partiu.
Partiu ao meio um filho, episódio bíblico de mau gosto, mas não levou a sua metade.

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(vinte anos depois…)

Rui Pedro descansa tranquilo recém-saído da caresystem que a programação inteligente da casa lhe destinou para final desse dia de agenda complicada. Na flor da idade gere um negócio próspero, filho que é das novas tecnologias, do arrojo e da visão situada de um futuro que é presente
Para um empresário requisitado como ele, nada melhor que cuidar do corpo e da alma numa ocasião especial como esta: Fora avisado por mensagem que tinha sido efectuado com sucesso o download de um holograma de Pedro.
Refastelou-se no sofá, toalha-meias com o veludo rosa do imponente recato. Accionou o playlist e desfrutou um strip de emoções porque Pedroquarentão@Cyber.com, que por essa tecnologia tão real, ali mostrava todos os seus atributos, envolto em malhas finas e lingerie, era tal e qual o amigo da mãe na fotografia da lareira. Uns valentes anos mais novo, é certo, mas a marca do peito não enganava, bem como a covinha peculiar no queixo redondo.
-Ele há cada coincidência…pensou Rui Pedro…
Rui Pedro era gay – toda a gente o sabia.

Fim

Apresentação do Livro, por Manuel Saiote : 21/Jul/2007 11:13
José... por acaso!

Quando, pela primeira vez li um texto do José Torres, fiquei com a certeza de que tinha lido algo de um dos escritores mais expressivos e fortes no universo da escrita portuguesa. Exagero? Não, de forma nenhuma. Apenas a constatação de que, entre os desconhecidos, quem escreve pode ser tão bom ou melhor que muitos dos que são propagandeados.

“A criação” é o título daquela que foi a minha primeira leitura do autor. Um texto curto (com o tamanho exacto para não cair na asneira vulgar), de traços “bocageanos” e cheio de conteúdo:

/O poeta nu / sentou sobre uma cadeira /o pesado cu /e masturbou um poema / Nasceu o Tu / e tinha acne / Era grande e pesado / cheirava a peixe e partiu / O poeta que o pariu / fui.”

Li-o como uma forma muito própria (brilhante, até!) do autor se apresentar, usando o texto como um óptimo cartão de visita. Nele tudo é torneado e polido pelo contexto, denunciando a habilidade e a arte do poeta no manuseamento das palavras tornando-as (todas) poesia.

O José Ilídio Torres é, podemos dizer, um realizador ímpar de obras escritas. Quem o lê, inevitavelmente, fica a olhar para a sua obra com olhos de ver, ler, sentir, cheirar e saborear. A maestria com que rege a sua orquestra de palavras tem o dom de cativar a leitura pela criatividade, vivacidade e dinâmica da escrita.Diz, em certo ponto que nasceu poeta:

/ "Nasci poeta / metade profeta / metade pateta / e não fui o primeiro”

noutro, que amarrotou e chutou a má poesia para longe,

/ “amarrotei a má poesia / esmaguei-a e chutei-a / para longe / para o mar / que a enrolou / de onda em onda /
/ de vento em vento / de pôpa em pôpa / até cair na areia / moribunda e reles...”

ou que se deita nas palavras,

/ “...nas palavras me deito / com elas escrevo as noites
verso após verso contando as horas / que as noites demoram a se deitar / nas palavras me deito / com elas me cinjo” /

de facto, o poeta é e faz tudo isso e mais... conta histórias. E fá-lo com a mesma medida e arte que usa na poesia.A sua versatilidade em termos de estilo e forma de texto e temática, faz dele uma espécie de homem-palavra multifacetado, com uma enorme sensibilidade e capacidade para a produção literária, não se amedrontando com temas perigosos ou de difícil equilíbrio numa linha de bom gosto e educação.
Leiam-se os seus temas eróticos ou os de crítica mais cáustica e entender-se-á o sentido deste comentário.

O homem destila as palavras, filtra-as e reconstrói-lhes os sentidos. Não há muitos que o consigam fazer com uma amplitude tão grande como o José.

Em jeito de conclusão direi que, quando, por obra do acaso, nos deparamos com um escritor da estirpe do José Torres, que consegue navegar na escrita sem pedir meças a nenhum ilustre, que consegue ser poeta, prosista, intervencionista e amigo que imortaliza os seus amigos com alma e mão de grande escritor... devemos seriamente questionar: Mas o que é que andamos por aí a ler quando só por acaso se conhecem os nossos grandes escritores?

Manuel Joaquim Matias Saiote (Comunicador)

Poema:"A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"


A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos
envenenou-os de um fel sem nome
numa mágoa sem praia ou areia
onde estender o teu sorriso antigo
agora branco de uma cal egípcia
que te pinta o rosto
e te seca os veios.

A tristeza matou os peixes
que já não procriam no sol posto
nem desovam no delta dos teu seios
nem saltam os obstáculos dos açudes
imponentes e viçosos
como quando te davas em feixes
nos dias quentes de Agosto

A tristeza matou os peixes
secou os lagos dos teus desejos
levou para o mar todo o sal
que trazias ancorado nos teus beijos.

Agora és um barco encalhado
num lodaçal de deslizantes enguias
que serpenteiam pelo teu ser adentro
extasiadas pelo cheiro podre da madeira
e te povoam o ventre molhado
na contagem decrescente dos dias.

Esse pássaro que risca o céu
saudoso dos peixes em boliço
e avista a tua carcaça no ilhéu
é a tua alma
mas tu não sabes disso.

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho/2007