domingo, 9 de setembro de 2007

Conto: O pescador que tocava harmónica para os peixes



Esta é uma daquelas histórias de narrador participante, uma vez que a vou contar, tal como a senti e o povo conta na Vila de Fão.
Esta é a história de Néu Caniço, pescador desde o dia em que nasceu. Tão pescador como seu pai, seu tio e seu avô o foram.
Pescador de todos os dias, menos aqueles em que o mar não recebe visitas, que nesses muitos deixaram as famílias a chorar, e viram a terra recolher em urnas pobres, seus corpos inchados de água.
Velho Néu, quando o conheci, somava sessenta e poucos anos, tantos quantos os de pescador, que dizem, sua mãe o teve em noite estrelada e boa de pesca, a bordo do Srª da Bonança, ali perto de um rochedo que se avista de terra, a “Pena” e que faz parte de um conjunto conhecido como “Cavalos de Fão”.
Quando as gaivotas ficavam em terra, o pescador dividia os beiços entre um cerveja gelada e a sua harmónica, sentado no banco de pedra de sempre, costas apoiadas na parede de madeira do Bar do Sérgio, ou Fôjo, como é conhecido.
Tocava como ninguém.Parecia que a sua alma espreitava em cada compartimento do instrumento, para logo penetrar matreira nos ouvidos de quem parava para o escutar, de quem, como eu, se sentava próximo para sentir o lamento melodioso do mar, que aquele homem bom trazia também nos olhos.
As rugas, essas, tinha-as bem marcadas no rosto, espécie de vagas cavadas, uma por cada dia sofrido de faina; muitas…
Na boca um cigarro enrolado, muitas vezes empurrado com a língua para um canto, como se de um farol aceso se tratasse, e que rodava sobre o horizonte assinalando a neblina que lhe saía dos pulmões.
Velho Caniço tinha sempre histórias para contar, mas de todas, e qual delas a mais sentida, uma fazia as minhas delícias e era assunto rerrente na voz rouca do pescador. Começava sempre assim:
- Menino, já te contei daquela vez em que um “Mero” se me cravou na linha e puxou o meu barco á volta da Pena durante mais de meia hora?
Respondia-lhe sempre que não.
O Mero, um dos troféus de pesca mais cobiçados, é um peixe que pode atingir comprimento e peso consideráveis. Difícil de apanhar, este verdadeiro senhor dos mares, era o personagem principal da história do velho lobo, que azedava, cada vez que os mais novos, convencidos de que se tratava de mais uma “peta” de pescador, riam desatados, facto que o irritava profundamente, a ponto de harmónica ao bolso levantar amarras e zarpar para outros “portos”.
Um dia encontramo-nos em alto mar. Tenho por hábito mergulhar na “Pena” para fazer caça submarina, uma vez que o rochedo está só a uma milha e meia da costa, e o peixe aí sempre foi abundante. Não reparei, no entanto, que o barco que avistei ancorado a uma dezena de metros era o velho Srª da Bonança, e dentro dele o meu amigo dava linha ao tempo.
Equipei-me a rigor e tombei de costas sobre as águas límpidas daquele lugar.
De apneia em apneia, fui arpoando alguns exemplares, que por esses tempos, o meu fôlego era bem melhor que aquele que tenho hoje, e de mim, muitas vezes se riem os peixes…
A determinada altura, levado pela corrente, cheguei perto do barco vizinho. Comecei por avistar a âncora presa na areia, logo depois o casco por cima de mim e uma linha de pesca a ser recolhida, chumbeira pesada e anzol solto nas águas.
Mais um que fugiu, pensei.
Por cortesia, emergi para dar os bons dias ao colega no barco. Logo que saí do silêncio profundo das águas, um som familiar entrou nos meus ouvidos, ainda à procura do estampido libertador da pressão. A harmónica de Néu Caniço soltava a mais bela melodia que me foi dada ouvir a partir da boca da sua alma.
Era uma música suave, apaixonada, longe das melodias chorosas que o marujo costumava tocar em terra, e que no momento em que soltei o capuz do fato de mergulho, se tornou cristalina como as águas.
- Bom dia! exclamei surpreso.
- Bom dia menino, por aqui?
-.É verdade, disse eu , apoiando-me na mão calejada que me ofereceu para subir a bordo.
-.Não viu por aí o meu amigo Mero?
-.Não. Respondi, como sempre respondo quando me pergunta se conheço a história do fugidio peixe.
Ficamos por ali os dois um bom pedaço, enrolando conversas e cigarros entretidos, que a mim me sabiam a sal e ao velho ao mesmo de sempre, “farolando” o tempo.
Despedi-me que a maré começava a subir e uma fome sorrateira parecia pedir uma sandes de presunto no Fôjo e uma cervejola a estalar.
- Se vires esse grande malandro, diz-lhe que está próximo o dia em que o apanharei na linha.
- Pode ficar descansado. Respondi-lhe mergulhando no som da sua harmónica, que tocava novamente a encantadora melodia.
Quando estava a chegar perto da minha embarcação, entre umas algas, a poucos metros de mim, avistei uns olhos como nunca tinha visto em anos de mergulho: grandes, numa cabeça gigantesca, logo abaixo uns lábios grossos, de onde saiu uma bolha de ar que escapou em zig-zag até à superfície.
O peixe parecia bem menos assustado que eu, mostrou-me lento o seu comprido dorso e desapareceu num golpe decidido de barbatana.
Fiquei mais pesado que o lastro que trazia à cinta. Faltou-me até comprimento na barbatana para chegar á superfície. Ansiava por contar a Néu Caniço o meu encontro com o seu Mero.
Logo que soprei a água do tubo à tona, procurei a embarcação do marujo com os olhos salgados, não sei se de água se de vontade quase cega de partilha, mas já não estava. Tinha soltado amarras e nem o horizonte me trouxe a sua companhia.
Rumei a terra com uma ansiedade a substituir a fome. Na minha cabeça a visão ainda nítida daquele soberbo exemplar, a soltar senhorial a sua barbatana nas águas, entre algas e a minha incontida surpresa.
Na noite desse mesmo dia, chegado ao Fôjo, entrado na porta levantei os olhos sobre os presentes à procura do meu amigo. Perguntei ao Sérgio se o havia visto.Respondeu-me que não lhe punha olhos e ouvidos em cima desde que saiu para a pesca nessa manhã.
Confesso que fiquei um pouco preocupado, mas decidi sentar-me numa mesa do salão decorado com madeiras gastas de navios e motivos do mar. Sérgio de viola nas mãos soltava os primeiros acordes para os turistas, que naquela altura do ano eram frequentadores daquele sítio especial, místico até…
Da sua boca os primeiros versos do poema de Pedro Homem de Melo:
- Era um rapaz da camisola verde – negra madeixa ao vento, boina maruja ao lado…
Regressei a casa, com a letra no ouvido, abri a porta um pouco desajeitado devido à cerveja bebida com sede, deitei-me na cama e sonhei. Toda a noite.
No dia seguinte, calção posto rumei ao rio, porta de saída para o mar, ali bem perto do Fôjo, para me estender na areia e ler um pouco.
Estranhei uma azáfama que trazia gritos de mulher misturados e passos miudinhos de criança, atravessando a estrada, lado para lado com a minha admiração, o meu espanto, que em breve se transformaria em preocupação.
- Ainda não sabes? Perguntou o Sérgio, voz de pescador, “fangueiro” de gema.
- Não sei o quê?, respondi.
- O barco de Néu Caniço foi encontrado ancorado na Pena, a Polícia Marítima rebocou-o e está a trazê-lo para cá.
Os homens de farda azul-marinho chegaram passado um instante. As pessoas que entretanto se tinham juntado num burburinho de especulação, levantaram poeira do chão precipitando-se para junto da água. Os olhos acotovelavam-se prenunciando a tragédia…
Assim que o Srª da Bonança encalhou na areia, mulheres, homens, crianças entraram rio adentro. Ouvi de longe:
- Não está o velho, está cá só um peixe enorme.
Ocupando quase todo o barco, o maravilhoso Mero que eu tinha visto no dia anterior. Olhos grandes, cabeça gigantesca, num dorso que metia respeito. Junto a ele, quase nos lábios esverdeados do bicho, a harmónica gasta de Néu.
O velho pescador que me encantava no som da sua alma e suas histórias de água e estrelas nunca mais apareceu, rezaram-lhe missa e a tragédia abateu-se sobre a vila de Fão.
Morreu afogado. Assim pensam todos.
Todos, menos eu.
Quando mergulho na Pena, duas ou três vezes por ano, velho Néu Caniço sempre aparece entre as pedras, olhos gigantes de mar solto para me cumprimentar, levantando a sua mão calejada, como que dizendo:
-Tudo bem, menino?
Para logo desaparecer num golpe decidido de barbatana.
É o meu segredo, não contem a ninguém, que não iriam acreditar.


FIM


Nota: Este conto pertence ao meu próximo livro a editar brevemente.

Todos os direitos se encontram registados

5 comentários:

Rosa Maria Anselmo disse...

oá José Torres
parabéns pelo seu blog, está muito bonito.
Tive o prazer de já ter lido este conto na "nossa casa comum" - o Lusos, e apreciei demais.
obrigada tb por me ter enviado por mail o endereço deste deu espaço.
aproveito para o convidar a visitar o meu cantinho e será bem vindo.
jinhos
Rosa Maria Anselmo

http://ocantodarosa.blogspot.com/

Anónimo disse...

Meu bom amigo,

Já conhecia este conto. Foi um prazer reler. Na verdade esse Minho é pródigo em mentes brilhantes, tenho de concordar. Grandes poetas tenho descoberto por ai. Tu és um deles!!! Honra-me a tua amizade.

Um abraço fraterno
Mel de Carvalho

flavio silver disse...

j.torres, da próxima vez que fores ao mar, não te esqueças de mim.
quero aprender essa melodia e, juro que aguçarei meu ouvido para apanhar logo à primeira.

conto bem contado éo que é.
tás na onda certa.
um abraço do flávio.

Maria Manuela Amaral disse...

Olá Zé,

Eu adoro este teu conto!! Adoro, simplesmente!

O teu blog está lindo. Parabéns!

Beijinhos da
Manuela*

Isabel Victor disse...

Muito interessante este conto ...

Abraço


iv*