domingo, 9 de setembro de 2007

Conto: Oficina da palavra


O letreiro, discreto e manuscrito, chamou a minha atenção ao passar pela rua dos artesãos. "Oficina da palavra - Consertos rápidos". A minha curiosidade não matou o gato, mas calcou-lhe o rabo sonolento no vão escuro das escadas...
Não refeito do susto, o felino quase apanha o eco do grito, o meu e o dele juntos, tal a velocidade com que subiu aquela dezena de degraus, à procura da festa compreensiva do dono, saltando-lhe para o colo.
Parecia que as mãos grossas e calejadas daquele homem por volta dos quarenta o aguardavam desde o preciso momento em que a sola do meu sapato gasto não encontrou só o degrau da escada.
Antes mesmo que eu pudesse articular um pedido de desculpas, já o bichano descia veloz até aos pés do dono, cuja mão estendida procurava a minha, atrasada.
-Fernando, ao seu dispor...
-José, muito prazer.
-Em que lhe posso ser útil?, perguntou aquele artesão de avental sujo, do alto de uma voz rouca, mas serena, amarelecida por um cigarro consumido que apagou sem pressas num cinzeiro de pedra sob a bancada.
-Vim pela curiosidade...
-Sente-se então, por favor. E dizendo isto apontou com o indicador uma cadeira de baloiço, onde me refastelei deliciado.
Tinha dali uma visão perfeita de toda a sala. Na bancada uma tábua de madeira estava prestes a ser talhada. Outras, ao alto, esperavam o mesmo destino sossegadas...O relógio de pé, tinha um compasso cansado, porém atarefado, parecendo não conseguir alcançar o tac seguinte em cada balanço do pêndulo e da minha cadeira...
Fechei os olhos.
Não sei quanto tempo dormi. O relógio estava parado ao fundo, marcando as cinco da tarde. Nem gato, nem homem, a sala estava vazia...Assim que me levantei, o meu pé voltou a calcar algo mais duro agora. Os meus olhos, escorregando-me pela cara, foram caír na placa de madeira tosca que estava a meus pés.
Esculpidos nela com mestria, os mais belos versos de um poema de amor. Li cada verso, cada palavra, cada letra com uma estranha familiaridade desconhecida...
Aquele poema só podia ter sido escrito por mim. O tema, o jogo de palavras, a rima, eram meus... Estava atordoado com tudo aquilo e reli...
Não tinha dúvidas, a escrita ali impressa, ali talhada a escopro e martelo, só podia ser minha e a própria assinatura no fundo não enganava:-Era a minha em cada letra.
Peguei naquele poema envernizado, mas curiosamente sem cheiro fresco, coloquei-o debaixo do braço e tacteei os degraus inversos, sem luz, nem gato...
Em casa, descobri o sitio ideal para o expor, pois aquele era um poema para expor, não para editar no Luso - Poemas, mas para expor como um quadro, uma obra de arte, que eu tinha a certeza, existia por si, tinha uma alma, um tempo que os varvitos da madeira guardavam só para si, insondáveis pela ciência dendocronológica.
Dormi aquela noite na sala, junto dele...
No dia seguinte, decidi voltar à oficina. Dobrei a esquina sôfrego de um agradecimento que me queimava a garganta, ansioso para o largar nas mãos daquele homem, do qual só sabia o nome: Fernando.
Subi os degraus, dois a dois, à procura daquela pessoa... Distraído, nem reparei que a simpática placa da porta já lá não estava, bem como as madeiras empilhadas, nem a bancada, nem as ferramentas...porém, no canto mais afastado da sala, o velho relógio marcava o tempo ritmado, agora, pulsante como um coração batendo, palpitando em cada movimento. Passei as minhas mãos pelas suas marcas, acariciei o vidro, encostei a minha face na sua e chorei a perda de alguém, que eu não tinha tido tempo de conhecer verdadeiramente...
Uma mão de mulher afagou os meus cabelos...dedos longos, finos e delicados como ponteiros. Secou as minhas lágrimas com um sopro quente de vida...encostou a costa da sua mão à minha boca que queria perguntar o mundo. Beijou os meus lábios, com uma madeixa loira do seu cabelo a acariciar o meu espanto, cada vez menor, cada vez mais comprometido. Fizemos amor.
Sandra é minha mulher agora. Casamos, tivemos filhos. Dois.
O rapaz gosta de trabalhar as madeiras, a rapariga escreve poemas...

FIM

in: "A tristeza matou os peixes que nadavam nos teus olhos"
Corpos Editora - Vila Nova de Gaia - Junho2007

2 comentários:

Angela Ladeiro disse...

Bem José, estou surpreêndida pela positiva...ainda vamos falar um dia sobre a história que eu gostava ver escrita, sobre os meus pais. Vou a correr comprar o teu livro. Um abraço

Cleopatra disse...

Fiquei Fan.